Paco Telefunken, herói da retirada.
Breve cronica sobre o final do Canal 9 (Valencia, Espanha) e o surgimento de um inesperado herói.
Valência, Espanha. Passadas as 9 horas da noite do dia 29 de novembro de 2013, escoltado por dois policiais da Generalitat Valenciana, o técnico audiovisual Francisco Signes adentrou a sala de comando da Televisió Valenciana, o Canal 9. Ele era o homem designado pelo governo conservador para “cortar os cabos” caberia a ele liquidar as emissões.
Depois de meses de uma agônica gestão, de intermináveis crises e disputas, chegava ao fim a vida daquele que fora o primeiro canal a produzir e emitir conteúdos audiovisuais em valenciano, uma das línguas minoritárias existentes na Península Ibérica. O Canal 9 representou, um dia, um enorme logro para um país recente saído das trevas homogeneizadoras do franquismo. Mais do que isso, era uma emissora de televisão herdeira dos tempos em que políticos e cidadãos acreditavam na necessidade de que o Estado investisse em meios audiovisuais como forma de garantir uma informação plural e a produção de conteúdos educativos, livre das pressões e amarras do mercado. Eram outros tempos. Tempos em que se entendia que o direito à informação não era um gasto e sim um investimento de primeira ordem.
Mas os tempos que correm são duros. Ante o império da troika e do neoliberalismo germânico, o governador de turno da região de Valencia, Alberto Fabra, entendeu que existiam outras prioridades mais periclitantes do que manter “os gastos” com o Canal 9. Afinal, uma região endividada, assolada por escândalos de corrupção e repleta de políticos picaretas não precisa de meios audiovisuais públicos e sim de silêncios, convivências e, principalmente, recursos financeiros para pagar juros aos bancos. Curiosamente, as entidades bancárias credoras são as mesmos que causaram o descalabro financeiro que desembocou na crise que aniquilaria o próprio Canal 9. Triste paradoxo do capitalismo. Para curar a enfermidade, prescreve-se a morte do doente.
Atrincheirados ao longo de mais de um mês, trabalhadores e trabalhadoras do Canal 9 continuavam as suas atividades, mesmo sem salários, mesmo sem esperanças. Resistência. Ao capital. E à estupidez da classe política. Insistência e persistência que se arrastou até aquela noite do dia 29 de novembro de 2013, destinada a ser a última. Ao vivo, um repórter passou a mostrar a porta da sala de comando aonde se encontrava o algoz do Canal 9. A porta fechada não permitia que se soubesse o que este homem pensava. Os policiais que o escoltavam tinham ficado do lado de fora. O tal Francisco Signes estava lá dentro, trancafiado.
As horas passavam e as emissões seguiam. Descobriu-se que o técnico-verdugo tinha um apelido. Paco, como todos os Franciscos espanhóis, acompanhado do singularizante ‘Telefunken’. Curioso. Para muitos, como no meu caso, este nome era sinônimo de televisão. Lembro-me que as primeiras televisões que chegaram em casa tinham essa marca impressa logo abaixo da tela. Impossível esquecer o patrocínio ao Campeonato Brasileiro de 1989, quando tínhamos “gol Telefunken”, uma honraria concedida ao tanto mais bonito da rodada.
Agonia. As horas passavam e o Canal 9 seguia emitindo a sua programação “normal”. Platô cheio. Emissão ao vivo e a cores. Todos os expatriados e curiosos, seguíamos pela internet ou via satélite. Nada. Paco Telefunken seguia trancado na sala de comando. Sozinho, acompanhado apenas da sua solidão. E de sua consciência moral. Se, por um lado, havia a necessidade do cumprimento de um mandato judicial, de uma ordem dada por um superior, por outro, estava a luta, a defesa por manter vivo a única emissora pública da região.
Há uma linha tênue, porosa, que separa um herói de um verdugo. Para Hans Magnus Ezemberg, ademais, há dois tipos de heróis: o clássico, eternizado pelo triunfo e um segundo tipo, que ele denomina “herói da retirada”. Este último nomeia àquelas personagens encarregadas de desmontar o andaime de um sistema, de renunciar às suas funções para derrubar um regime ou àqueles destinados a detonar o gatilho que implode uma instituição qualquer. Gorbachov foi um herói da retirada. Segundo o escritor Javier Cercas, Adolfo Suárez foi, para a Espanha da Espanha da Transição, um herói dessa classe, alguém que retirou-se para evitar a volta do franquismo, em 1981.
Paco Telefunken poderia escorar-se na legalidade e executar a missão que os poderes jurídicos e políticos encomendaram. Quiçá alguns o considerariam um algoz. Como redenção, poderia escorar-se na tecnicidade de sua função. Como a do médico que “apenas” injeta o líquido letal nas veias de um condenado à morte. Mas, para a desgraça de alguns e a felicidade de muitos, Paco optou pela ética. Um caminho tortuoso, sem garantias de que uma decisão é realmente a apropriada. E assim o fez, para espanto de todos.
Ao abandonar a sala de comando do Canal 9, aguardado pelas câmeras, Paco falou: “tomei a decisão de que isto não fecha hoje. A minha consciência me diz para que não apague, como mínimo para mim. Decidi voltar para minha casa, vendo a dimensão que isso tudo ganhou”
No mundo de carne e osso, dos afetos e dos afagos, contudo, já quase não há mais espaço para a ética, muito menos para os heróis da retirada. A despeito de Paco Telefunken, pouco mais durou o Canal 9. Afinal, sempre há algum técnico disposto a cumprir a legalidade, seja ela justa ou não. A história sempre se repete. Primeiro, como farsa. Depois, como tragédia.