A memória sangra: literatura e propaganda na segunda guerra mundial
Por João Anzanello Carrascoza e Christiane Santarelli.
Este artigo foi publicado originalmente na Revista Z Cultural – Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea.
Acesse o artigo original aqui.
…quando tento me lembrar de tudo que passei (…), as lembranças se fundem numa só imagem, como se tudo tivesse durado apenas um dia. Por mais que tente, não consigo desdobrá-las em partes e arrumá-las em ordem cronológica, como normalmente se faz quando se escreve um diário.
Wladislaw Szpilman
Prelúdio
Este artigo é o segundo “conto ilustrado” de uma trilogia sobre a evolução da publicidade com o advento do espírito moderno, o incremento das estratégias e táticas da propaganda durante a Segunda Grande Guerra e suas novas conformações no cenário midiático da pós-modernidade. Inspirado no romance de Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, que reproduz imagens culturais como elementos narrativos (anúncios, cartazes, rótulos etc.), o presente texto adota a forma de relato ficcional. Por meio das anotações de uma judia, a narrativa traz o drama de sua família na Alemanha, a partir de 1938, sua emigração para o Brasil em 1942, e seu cotidiano até o fim da guerra em 1945. Na trama, os personagens tomam contato com as técnicas de propaganda usadas por Hitler e, em seguida, com a propaganda nacionalista de Getúlio Vargas e a publicidade impressa brasileira.[1]
O caderno de anotações
Lembro de ter visto a gravura num livro de mitologia. Prometeu está lá, acorrentado, e as aves de rapina bicam seu fígado eternamente. Agora ocupo o seu lugar nessa cena e vejo a águia ariana descer dos céus, a toda velocidade, e bicar com avidez a minha memória. Em seguida, ela alça vôo de novo e, quando chega às alturas, volta para me bicar impiedosamente outra vez. E outra. E mais outra. E cada investida sua é como o arrancar de um dente a sangue-frio: a memória sangra, sangra, sangra, e não há como estancar a hemorragia.
O que podemos fazer com as recordações? O que podemos aprender a cada tiro, a cada lembrança de dor disparada no pensamento? O pior de lembrar é que os momentos já passados, sobretudo os cruéis, não cessam de ser revividos.
Aquela noite foi da mais profunda escuridão. A primeira. Em que tudo se partiu. Em que o “j” vermelho passou a nos identificar em todos os documentos. A noite do pogrom, quando a perseguição começou de fato. Kristallnacht. Em hordas, eles atacaram as sinagogas, as nossas escolas, as nossas lojas. O armarinho de Berta e Alexander, nossos vizinhos, ficou totalmente destruído. Ruínas, ruínas, esse é o novo compasso do meu coração.
Não me esquecerei enquanto viver. Vi pela janela de casa a sinagoga queimando, as labaredas subindo, vorazes, e o povo assistindo, pacífico, como se fosse um espetáculo inocente. Meus olhos represam cada segundo dessa cena, enquanto a minha angústia vai desaguando sem parar, infiltrando-se em todos os cantos de meu ser para afogar qualquer átomo de resignação que porventura ainda reste. Meus olhos, como se fossem de vidro, vão me estilhaçando um pouco mais a cada manhã, quando, ao abri-los, vejo que o sol ilumina toda a cidade lá fora. Um novo dia. Mas só em sua pele é um dia bonito. As suas horas, negras, se acumulam, em grossas camadas, no fundo de mim.
Berta chora, chora, os olhos como duas brasas que parecem queimarão para sempre. Conta que viu judeus sendo presos pelos nazistas, dezenas deles. Dezenas. Viu policiais baterem num velho rabino até ele desmaiar. Um homem, ao seu lado, disse que não podiam tratar assim os mais velhos, fossem de que origem fossem. Então um policial gritou que ia mostrar como tratavam os judeus, para que ninguém ali se esquecesse, e espancaram o homem até a morte. Berta o conhecia. Havia estudado com ela, quando menino, no mesmo colégio judaico. Ela treme, soluça. Vejo o susto e o terror em seu rosto desfeito: como um espelho, seu rosto é o meu também.
Por todos os lados, destroços. Os vidros quebrados são cacos de um passado íntegro e honesto. São vidas despedaçadas. Somos gravetos partidos e macerados pelos agentes covardes do Terceiro Reich.
Fomos proibidos de ir aos parques, às pracas, às escolas, aos teatros. Não tenho mais onde passear com Jan. Ensino a ele, às ocultas, canções judaicas. Agarro-me à Torá. Agarro-me à esperança de que ainda há humanidade. Kurt diz que há filas imensas de judeus no consulado americano, buscando uma chance de escapar. Alguns estão conseguindo vistos de emigração para a Argentina, o Uruguai, a Venezuela. Todos, todos, pensamos em sair daqui. Da terra onde nasceram nossos avós e nossos pais. Da terra onde vivíamos livres e agora nos aprisionam, nos desintegram, nos humilham.
Os dias são tão sombrios quanto as noites. Nos jornais, nas revistas, nos cartazes de rua, nos selos, as mensagens nacionalistas e promotoras da “raça pura”. Hitler, seu armamento, seus soldados, seus discursos, o Deutsches Reich. As trevas reinam por todos os cantos. O inferno vai se tornando ubíquo.
Hoje é aniversário de Kurt. Não há o que comemorar, senão que estamos vivos. Mas por quanto tempo? E para quê? Os soldados do Führer estão em todas as ruas. A cidade está cheia de cartazes com propaganda nazista. A maioria deles nos maldizem, mas há os que também acusam os cristãos. Alguns trazem palavras de ordem do ministro Goebbels. Se uma mentira é repetida suficientemente, ela acaba por se converter em verdade. Sim, há um deus aqui: Adolph Hitler.
O frio aumenta à noite. Jan dorme no meio de nós. Não sei como consigo aquecê-lo. Neva dentro de mim.
O Rosh Hashanah se aproxima. O que podemos esperar do ano-novo, senão a paz e a decência dos velhos tempos? Os tempos em que podíamos ainda planejar a nossa vida e sonhar em envelhecer com dignidade…
As deportações começaram. Kurt teme que nos enviem em breve para algum campo de trabalhadores. Sugeriu que Jan vá para a Inglaterra no kindertransport. Muitas crianças judias estão indo para lá. É uma longa viagem de trem até a Holanda, Depois, em barcos, as crianças seguem para Londres. Os pais, desolados, tentam convencer os filhos que vão logo depois reencontrá-los. Mas sabem, como nós sabemos, que não haverá depois. Às vezes, no auge da aflição, hesito, o sim e o não me atormentando como agulhas de mil pontas. O kindertransport pode ser a única chance para Jan.
A guerra estourou com a invasão da Alemanha na Polônia. Não sabemos se vão nos dar alguma trégua, enquanto combatem fora do país, ou se vão semear ainda mais o terror.
Hoje aviões sobrevoaram Hamburgo várias vezes. Explodem o silêncio com seus motores, rasgam a nossa calma como uma folha de papel, acendem o pânico em cada um de nós. Cortam o céu cinzento de inverno e, somem, nervosos. Minutos depois, retornam, ainda mais barulhentos. Na última vez, lançaram uma chuva de folhetos sobre a cidade. Berta pegou um na rua. São mensagens do Führer, repetindo seus dizeres megalomaníacos, seus delírios expansionistas.
Nos murais, nos cartazes, nas faixas estendidas pela cidade, nos jornais, em meio às fileiras de bandeiras nazistas, proliferam as propagandas contra nós. Ou contra os cristãos. Contra todos os que não têm sangue ariano.
Hermann, irmão de Berta, conseguiu um emprego de carregador. Vigiado por homens da Geheime Staatspolizei, transporta para a casa dos burgueses arianos o que foi confiscado dos judeus. Móveis, roupas, cofres, mercadorias, tudo. Uma manhã, os soldados comentavam que a Alemanha atacara os Países Baixos. E, de repente, resolveram descarregar suas armas num casal de judeus que passava na rua conversando. Pra comemorar, disseram. Os corpos ficaram estendidos ali, na mesma posição, durante dois dias. Então obrigaram Hermann e outros carregadores a colocá-los num caminhão e os enterrar. A cada dia estamos mais pobres, doentes e amedrontados.
Mas existe alguma esperança. Uma revista americana, passada de mão em mão, chegou até nós. Kurt, que sabe um pouco de inglês, mostrou nela a imagem de uma águia: era uma propaganda que convocava o povo americano a se alistar no exército. Quase chorei, confusa, pensando na águia ariana. A águia que nos meus sonhos vem me bicar a memória, me arrancando lembranças dolorosas que, infelizmente, voltam a se regenerar.
Kurt mostrou-me outra propaganda na revista: a imagem trazia pequenos desenhos de bombas sendo lançadas por um avião. Pacotes de presente que os americanos mandam para Hitler, ele disse. E para nós, também, eu penso. Afinal, aqui estamos, sem direito a abrigos antiaéreos.
A humilhação é cada dia maior. Agora temos de levar presa à roupa, ou ao redor do braço, sempre visível, como uma nódoa, a estrela de davi, para que todos saibam que somos judeus.
Já os nazistas, orgulhosos, levam a suástia, como sua insígnia. A suástica é sua bandeira, seu cálice do Graal.
A estrela de davi é a nossa cruz, o nosso calvário cotidiano. Jan, que fez seis anos, já é obrigado a usar uma também. Nas ruas, espalharam cartazes com fotos de um adolescente, tendo Hitler ao fundo. A juventude serve o líder, diz o título. E, a seguir, a convocação: Todos os meninos de dez anos para as Juventudes Hitlerianas. Kurt diz que as fotografias, como imagens sagradas, ajudam a ampliar o fanatismo dos alemães pelo Führer.
Não nos tratam só como inferiores, julgam que somos seres perigosos. São obcecados pela ideia de que o nosso povo detém o poder em todo o mundo e pretendemos aniquilar a “raça” ariana, que tem neles a representação máxima. É justamente o contrário o que sucede. Estamos sendo perseguidos à luz do dia, sem nenhuma misericórdia.
Kurt conseguiu um exemplar do Der Sturmer, um jornal antissemita. Uma reportagem informava que havia mais de 16 mil pessoas na manifestação contra os judeus em Berlim. O editor, Julius Steicher, diz que somos uma ameaça. Na seção de cartas, nos xingam, dizem que nós somos a desgraça e a perdição da Alemanha. Morro a cada uma das linhas que leio. Os meus olhos me doem. Choro para dentro, como quem engole um pedaço de pano.
Os homens da Gestapo cruzam a cidade de um lado para o outro, o tempo inteiro. Reprimem, maltratam, espancam, torturam. As tropas das SA também vão e vêm, para proteger os membros do partido, as autoridades. Aprendemos a distinguir quem é quem. Uma moeda com duas faces iguais. Eles estão por toda a parte, como se nos vigiassem até a consciência. Nem temos mais os olhos baixos. Nossos olhos estão no fundo da terra, em meio à matéria de que são feitos os pesadelos. Ao despertar, não me lembro mais dos sonhos que tenho. Quando a realidade é um naufrágo cercado de perigos por todos os lados, os sonhos nos afundam em angústias iguais as da vigília. Não há uma linha divisória: o mal se derramou, apagando as fronteiras, como a moeda de faces iguais. De tanto ver o Führer nas fotos dos cartazes, nas faixas, nos murais, sonhei com ele. Minha vida é uma moeda de duas faces iguais. Duas faces dantescas.
Não há mais dignidade. Levas de judeus vivem feitos molambos, pedindo esmolas, roubando e pilhando como os soldados da Gestapo. Racionamos a comida. Por vezes, passamos o dia todo apenas com umas torradas. Deixamos os legumes para a sopa de Jan. Procuramos emprego nos classificados dos jornais, mas ninguém dá trabalho a judeus, senão para nos imolar ainda mais.
Hermann conseguiu emprego para Kurt numa marcenaria. Ele sai cedo de casa, ainda no escuro, e volta ao anoitecer, moído, as mãos feridas, as unhas sujas, às vezes cheias de lascas e estrepes, que depois eu tento extirpar com uma pinça. O pó da madeira lhe dá alergia. Levanta de madrugada se coçando e vai à janela mirar a cidade onde um dia podíamos andar de mãos dadas, caminhando, sem medo de ser ultrajados ou fuzilados de forma injustiçadas, a qualquer hora.
Deus não nos abandonou. Milagres estão ocorrendo. Kurt soube que a chefe do serviço de vistos do consulado do Brasil tem emitido vistos para judeus. Alguns conseguiram fugir para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sei se lá existem índios, mas se houver, não serão tão selvagens quanto os nazistas. Kurt disse que amanhã vai procurá-la. Quem sabe ela não nos livre desse martírio…
Entramos no carro do consulado brasileiro. Não me atenho a esses detalhes, mas Kurt sussurrou, é um Opel Olympia. Nunca mais me esqueci desse seu comentário. Não sei por quê. No banco da frente, o motorista e, à direita, a chefe de serviços de vistos. Eu não sabia que anjos tinham rosto e nome. Aracy, ela se chamava. Pediu a Kurt que lhe desse as jóias e o dinheiro. Iria levá-los na bolsa, para que não fossem confiscados, se a Gestapo nos prendesse. Acompanhou-nos até o interior do navio para ter certeza de que estávamos a salvo e lá nos devolveu nossos pertences. Agradeci-lhe com um abraço forte. Ela disse que também tinha um filho. Acariciou os cabelos de Jan e sorriu. Há tanto tempo eu não via um sorriso. Na mais profunda escuridão é que se pode ver a luz de uma estrela.
Chegamos em São Paulo há dois meses. Chove o dia todo, uma garoa fina, o céu encortinado de cinza. Mas há sol no meu coração. Moramos no bairro do Bom Retiro. Aqui existe uma grande comunidade de judeus. Kurt arranjou emprego numa fábrica de roupas. A vida caminha, mas as lembranças continuam. Não há como parar o fluxo delas. Passaram-se apenas dois anos, desde que tudo começou, e parece a minha vida inteira. A dor não pode ser represada em palavras. A dor é uma mina, o tempo todo extraímos dela mais dor. Não sei ainda falar a língua nativa, mas vou aprender. Essa será a nossa pátria para sempre.
Sinto-me só, apesar do bairro ser totalmente de judeus, com exceção de algumas famílias italianas que vivem ao nosso redor. Tenho dificuldade em entender o português e mesmo para falar com os judeus. Eles vieram há muitos anos para cá, a maioria do Shtetl, dos povoados da Lituânia, da Espanha, da Bessarábia. Os pioneiros estão velhos, os filhos e netos não aprenderam o iídiche. Há também muitos polacos, mas poucos sabem falar alemão.
Levo Jan ao Jardim da Luz para brincar com outras crianças. Às vezes vamos até o rio Tietê. Sem garoa, a paisagem é bonita, o verde estala, faz um calor tropical. Os homens nadam, disputam corridas de barco a remo. Outro dia, um menino se aproximou de Jan e perguntou seu nome. Logo os dois se entenderam e saíram a correr no gramado, brincando, ruidosos. Jan. Que nome eu lhe daria hoje?
Apesar da paz, da posição neutra do Brasil na guerra, tenho medo do que possa nos acontecer. Vejo movimentações estranhas aqui. Há faixas, cartazes e murais nas ruas, anunciando um Brasil Novo. O país se arma. De que lado estará? Vi um cartaz que me lembra os de Hitler. A foto do presidente Getúlio Vargas rodeado de bandeiras brasileiras, aviões, tanques de guerra. Kurt diz que a mensagem é sobre a renovação das Forças Armadas nacionais. Quo vadis?
Uma recordação, boa, reluz agora nas trevas de minha memória, uma surpresa que Kurt nos proporcionou. Fomos no domingo, de trem, com outros judeus, a Santos, para ver o mar. O mar. O sal. O gosto das lágrimas. Dessa vez, lágrimas de encantamento, de gratidão. A felicidade me sofrendo. A Estação da Luz, tão imponente, o vaivém alegre das pessoas, o cartaz com o desenho de uma criança e uma mensagem que não entendi direito. Depois, a vista da serra, de um verde de doer, de tão bonito. E o mar. E Jan correndo pela praia. A vida nele, livre, acenando para o sol.
Queria trabalhar, vender tecido em alguma das lojas da rua José Paulino, ou em alguma tecelagem, para ajudar Kurt nas despesas da casa. Nos Estados Unidos, as mulheres estão indo para as fábricas, ocupando o espaço dos homens que vão para a guerra. É preciso aumentar a produção de armamentos. A guerra traz a miséria para uns, a riqueza para outros. Eu queria ter um emprego: quem sabe costurar, atender no balcão como antes. Talvez assim acalmasse um pouco a minha tormenta.
O Brasil enfim declarou guerra contra o Eixo, depois que navios brasileiros foram destruídos por submarinos alemães. Os racionamentos começaram, principalmente de petróleo e energia elétrica. O medo maior é dos bombardeios aéreos. Em minha mente, já dispara o alarme de novas ameaças. Estarei algum dia em paz?
Pedem que poupemos luz. O governo ordenou que se fizesse black-out na costa do país. Já não quero mais ir a Santos. Vivendo aqui, nos livramos da perseguição antissemita, mas a guerra veio atrás de nós, como uma maldição. As sombras não morrem nunca. Black-out, black-out. Sinto que as sombras existem para brilhar no mais fundo de mim.
O presidente faz grandes comícios pelo país afora, reunindo sempre enorme contingente de populares. O rádio traz notícias de suas realizações todos os dias. As inaugurações de pontes, estradas, escolas, enfim, de qualquer obra pública, são sempre eventos que juntam multidões. Fala-se de um novo Brasil o tempo todo, uma República nova. Um país novo. O nacionalismo é enfatizado nos pronunciamentos do presidente, no discurso de outras autoridades, nos jornais, nas rádios, nas faixas de rua. O receio de que se repita aqui o que vivemos em Hamburgo não me abandona. A águia sempre gera novos filhotes.
Todas as cartas que enviei, nos últimos seis meses, para Berta e Alexander, voltaram. A Cruz Vermelha diz que eles foram embarcados num dos trens com destino a Auschwitz.
Kurt soube pelo jornal que Aracy – a chefe de vistos do consulado brasileiro que nos ajudou a sair da Alemanha –, voltou ao Brasil, com o marido, o diplomata Guimarães Rosa. Gostaria de ter o seu endereço para enviar uma carta. Agradecer. Falar do meu Jan. Perguntar do menino dela.
Kurt trouxe uma revista chamada O Cruzeiro para eu ler. As notícias são otimistas. Afirmam que os Aliados estão prestes a ganhar a guerra. Mas e o que perdemos? O mundo que tínhamos, a nossa terra, os nossos amigos. O que ganhamos sem eles?
Um anúncio de Coca-Cola traz um pequeno mapa das Américas e os dizeres, Unidos hoje, unidos sempre.
Outro anúncio nos lembra que o rádio, a mais eficiente arma da guerra, é invisível. A vitória chegará por meio dele e resultará numa nova era em que os homens serão mais livres. Será?, eu me pergunto, observando Jan fazer a lição escolar, distraído, as pernas balançando.
Quando fizemos o passeio a Santos, ficamos amigos de uns polacos que vivem aqui perto, ao lado da Escola de Farmácia. Issac e Margot viveram no gueto de Varsóvia e conseguiram fugir de um dos trens de transporte de gado que levavam prisioneiros para os campos de Treblinka, onde seriam tratados como cobaias pelos nazistas.
Margot conta que não sabe como sobreviveu à epidemia de tifo, à carnificina dos soldados das SS, dos lituanos e ucranianos que, depois, vieram fazer a vigilância do muro entre o gueto e a zona ariana da cidade. Perdeu toda a família. Era enfermeira num berçário judaico, quando, um dia, agentes da Gestapo entraram em tropelia, pegaram os recém-nascidos e os jogaram numa carroça abarrotada de cadáveres. O grito das mães e o choro desesperado das crianças continuam ecoando nos meus ouvidos, Margot diz. E se cala. Issac era tipógrafo e sabia um pouco de alemão. Conseguira emprego num jornal que os nazistas editavam lá, fabricando falsas notícias sobre a guerra. Às vezes, ouvia disparos na rua e ia até a janela: eram judeus sendo fuzilados por nada.
Nas noites de sábado, vamos ouvir rádio na casa de Margot e Issac. Como se anestesiados pelas músicas e os programas, esquecemos nossa história. Rimos e cantamos os versos de uma propaganda de um remédio para dor de cabeça, Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Então vêm as notícias da guerra. Morte, destruição, escombros. Escombros, destruição, mortes. Mas há também histórias de prisioneiros salvos por tropas aliadas. Histórias de fugas como a nossa. Histórias de vidas ressuscitadas.
Hoje é o Purim. Dia de comemorar a salvação do massacre de Assucro. E da nossa própria salvação. Se estivéssemos em Hamburgo, certamente teriam nos enviado para um campo de extermínio. Penso em Bertha, em Lore, em Fanny, amigas com quem estudei no colégio. Penso no rabino que mataram. Penso no mundo que começou a submergir na Kristallnacht.
Os jornais falam que os ingleses inventaram um equipamento, chamado radar, que localiza os aviões inimigos escondidos atrás das nuvens. Assim podem atacá-los de surpresa e eliminá-los. O americanos também o fabricam.
Não mais localizo o mal dentro de mim. Ele se misturou ao meu sangue. Não há radar que o encontre. Parece que nunca mais serei uma mulher inteira. Sou um vaso quebrado. Vejo Jan aprendendo português com facilidade, brincando com as outras crianças, e tento me reanimar.
Posso dizer que estamos bem. Mas a realidade vaza para os sonhos que não poderão jamais ser apenas sonhos. A memória sangra. As lembranças continuam fluindo, intermitentes, e me esvaziam de confiança. A felicidade em mim sempre terá uma gota de tristeza que, espero, não vá envenená-la. Jan vai crescendo saudável. É um menino alegre. Joga futebol com os góis. Seu pequeno passado de turbulências pode ser esquecido. O meu não.
Chegam notícias de que aviões aliados bombardeiam a Alemanha incessantemente. Emoções se mesclam no meu coração, como duas águas. A queda de Hitler. Mas ao mesmo tempo o nosso solo sagrado destruído. As cidades, os campos, as fábricas. Tudo pode ser reconstruído. Menos a minha alma.
Passei essa manhã pela rua Três Rios. Fiquei pensando. O passado, um rio. O presente, outro. E, para mim, ambos são águas misturadas.
Não há como limpar da água a sua impureza de ser um elemento vivo, que se recicla. A água não nasce. Ela é. Tudo que é vivo dói. O terceiro rio. O futuro. O que me promete? E se ele tiver uma terceira margem, como será a minha? Conseguirei me livrar de sua correnteza?
* João Anzanelo Carrascoza é doutor em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP).
** Christiane Santarelli é doutora em Ciência da Comunicação na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
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Nota
[1] Uma versão deste texto foi publicada no livro Tramas publicitárias – Narrativas ilustradas de momentos marcantes da publicidade (Ática, 2009), no qual os autores completam a trilogia constituída de histórias de três épocas distintas do capitalismo, que mostram uma perspectiva histórica do impacto da comunicação de massa na sociedade. Para cada história foram criados personagens, que incorporam valores da época e de sua cultura. A primeira tematiza o “nascimento” da sociedade de consumo. Ambientada na Paris da Belle-Époque, revela a capital da vanguarda europeia – auge da modernidade, ocupada com sua intensa vida cultural, problemas sociais e um capitalismo de produção –, que utilizava a arte publicitária para estimular o consumo de bebidas, remédios, alimentos e diversão. Ao longo de um dia em Paris, um turista estrangeiro, passeando pela cidade, como um flâneur, vê os cartazes de Murcha, Chéret e Lautrec que divulgavam os produtos e serviços da época. A terceira história, situada no período contemporâneo, está contaminada pelo espírito pós-moderno. O protagonista é um cidadão sem pátria, conhecedor das mais modernas tecnologias de comunicação e as usa para atingir seus objetivos publicitários. A narrativa faz uso da estética pós-moderna, do pastiche e da bricolagem de gêneros.