Temos nosso próprio tempo: Memória, temporalidade, consumo e imaginários juvenis sobre a década de 1980.
Introdução
Proponho iniciar este texto narrando dois casos ocorridos em 2011, que não apenas podem ser curiosos como, fundamentalmente, ajudam-nos a compreender questões que trataremos aqui, além de serem fatos que inspiraram grande parte das inquietações apresentadas a seguir.
O primeiro, ocorreu durante uma aula de Sociologia por mim ministrada num curso de graduação em Comunicação Social numa universidade particular. Em algum momento da disciplina, quando discutíamos alguns contextos da década de 1960, contra-cultura, multiculturalismo, movimentos sociais e juvenilização da cultura, uma aluna (por volta dos 20 anos de idade), comentou que sua geração era muito acomodada, sem interesses políticos, coletivos, extremante individualista e sem “ideologias”. Em seguida, ela se lembrou da canção Ideologia, de Cazuza, como sendo algo que expressava a presença de ideologias e politização na geração dos anos 1980, a qual ela associava como sendo a minha geração. Primeiramente, lembrei durante a aula que não se pode afirmar que a juventude hoje esteja despolitizada ou mesmo desmobilizada, sem preocupações ou ações coletivas. Ao menos, não em sua totalidade, haja vista a quantidade, visibilidade e representatividade de inúmeros coletivos juvenis atuando na esfera pública. Em segundo lugar, lembrei que a canção de Cazuza representava no fim da década de 1980 exatamente o fim das “ideologias”, trazendo uma certa constatação melancólica de que aquela geração não conseguiu “mudar o mundo”, e se rendeu aos valores do mercado, do consumismo, deixando para trás o projeto revolucionário da década de 1960, cindida entre esquerda e direita. Nercolini e Caminha (2012) analisam o videoclipe desta canção e chamam a atenção para como os elementos visuais ajudam a reforçar esta idéia, com símbolos da cultura do consumo como Mickey Mouse, tênis All Star, em composição com outros símbolos como coturnos, o “A circulado” anarquista, foice e martelo, remetendo à idéia de um sujeito jovem cujas referências circulam entre aquelas da luta juvenil dos anos 1960 e práticas e imaginários da cultura do consumo tão característica dos anos 1980. Os autores atentam ainda para o fato de que haja uma disputa de significação e legitimidade no universo das canções brasileiras populares, entre a MPB, vista como politizada séria, o BRock, entendido tantas vezes como mercadológico e ligeiro3. Ainda segundo eles,
o que está em questão nesse reprocessamento do passado no presente são as organizações de memória social nas práticas autorreflexivas e midiáticas das juventudes 80 para compor um ponto de partida, uma espécie de lugar de ancoragem, nas busca por novos projetos identitários. Os anos 60, nos idos de 80, constituíam-se como uma memória muito recente do passado, que inclusive, obrigou parte de um grupo intelectual de esquerda a manter-se em silêncio com o recrudescimento da ditadura militar, e essa condição contextual tornava muito difícil o esquecimento. Essa memória estava ali, dentro dos lares brasileiros, na discussão sobre redemocratização, na campanha Diretas Já, eclodindo, brigando para ser explorada, estabelecendo, desse modo, uma tênue relação entre os universos privado e público.(Nercolini e Caminha, 2012, p. 3).
Argumentei tudo isso durante a aula, expondo este contexto histórico mais amplo, onde, nos anos 1980 no Brasil, já havia a consolidação de uma cultura midiática e de consumo, que já se incorporava aos hábitos culturais de grandes parcelas urbanas do país, onde os jovens eram designados (às vezes por eles mesmos) como “geração Coca-Cola” ou “yuppie”, “individualista”, “narcisista”. Uma geração4, portanto, que teve que forjar sua própria identidade em meio a crises econômicas que sabotavam esperanças futuras e em um país extremamente desigual, em vias de redemocratização; uma geração que, mesmo tendo adquirido e se inserido em hábitos de consumo midiático, ainda vivia as incertezas e contradições em relação à memória e à tradição revolucionária e contestatória dos anos 1960 como mito ou sombra, numa negociação constante entre passado e presente, resistência e aderência ao mundo do consumo, entre outros embates.
Ora, mas na percepção de minha aluna, a canção Ideologia era o símbolo de uma geração que “dizia coisas”, ainda que fosse para constatar o insucesso, “falava de coisas importantes”, diferente da “inércia” de sua geração (expressões dela). Esta fala chamou nossa atenção fortemente naquele momento e ainda hoje reverbera como inquietação, uma vez que as apropriações simbólicas de objetos culturais, ações sociais e de canções de outras épocas ganham significações que muitas vezes não coincidem nem com a autoria e nem com as apropriações feitas no momento de sua composição. Além do elemento nostálgico, uma tendência em perceber no passado um momento melhor, mais politizado (neste caso), ou mais belo, mais tranquilo, com valores sociais (ou morais) mais rígidos ou mais constantes, entra aqui em jogo também um imaginário específico sobre o jovem como tendo o papel de revolucionário, quando sabemos que já nos anos 1980 havia um certo “acerto de contas” com a geração de1968 pelo fato de não conseguirmos os mesmos feitos da geração que viveu a contra-cultura. E hoje, temos como hipótese que os jovens parecem se sentir em dupla falta, com ambas as gerações, onde as fronteiras e diferenciações entre estas se mostram diluídas em favor de um passado único, visto como melhor que o presente, em narrativas que contam sobre uma cobrança social por não exercerem a contento seu papel pretensamente destinado.
A memória individual e coletiva é seletiva, sujeita a distorções, contendo real e imaginário, lembranças e esquecimentos, não sendo, entretanto, indigna de análise ou menos rica em questões, aspectos, nuances que nos apresentam desafios para a compreensão dos imaginários sociais, sentidos de temporalidade, de pertencimento e identidade, embates geracionais, presença e apropriação de elementos midiáticos na construção das “estruturas de sentimento” (Williams, 1979) de um dado momento. Importa interpretar como foi construída esta memória sobre os anos 1980 na atualidade, compreendendo as camadas de sentido que foram se acumulando no tempo desde aquela época para a edificação desta idéia, presente entre muitos jovens, de que aquele era um momento de especial ou maior contestação e politização ou pelo menos de um momento melhor que o atual. Já há algumas décadas o campo da História vem discutindo a questão da memória e suas relações com a história, bem como o fato de haver tanta demanda pela memória, patrimônio e passado na atualidade, talvez exatamente porque não temos mais “sociedades-memórias” (Nora, 1993), ou seja, já não há mais a experiência transmitida e sim uma ruptura com o passado. Voltaremos à questão da memória e das temporalidades mais à frente.
O segundo caso inspirador desta reflexão, ocorrido em 2011, trata de uma informação veiculada na lista de discussão da IASPM-LA5, sobre as manifestações estudantis no Chile há dois anos e o uso que os jovens fizeram da música Thriller, de Michael Jackson, sucesso retumbante dos nos anos 1980, não apenas pela letra ou música, mas também pelo videoclipe que, de certa maneira,é tratado hoje como um cult do gênero, contendo uma coreografia encenada por mortos-vivos (no videoclipe), fartamente ensaiada e imitada por jovens e adolescentes em todo o mundo. A discussão acalorada na lista referida foi alimentada pelo fato de que os jovens chilenos em luta pelo direito à educação pública estavam usando em suas manifestações a música e a coreografia desta famosa canção pop, gerando os que detratavam esta apropriação, julgada como incoerente com as aspirações do movimento, desvirtuando-o com elementos e imaginários imperialistas, consumistas que nada tinham a ver com o que o movimento propunha. Ao mesmo tempo, também se faziam presentes nas discussões aqueles que pensavam que esta era uma apropriação de um símbolo juvenil, independente do seu contexto de origem, sendo usado com outros fins e sendo por isso legítimo.
Julio Mendívil (2013) ressalta que as canções possuem uma certa biografia social e personalizada, variando no tempo, nos lugares, sofrendo usos variados e múltiplos no momento do consumo musical. Aliás, este é o enfoque do autor, ao pensar na vida social dos objetos (à moda de Appadurai) ou das canções, propondo uma reflexão sobre as significações que se dão exatamente no momento ou o lugar da apropriação por parte dos ouvintes/receptores, lugar onde se completam os sentidos musicais, que não se esgotam na produção ou autoria. Parece, assim, que as canções surgem como “entidades” construídas mediante uma relação intertextual entre elas e os sujeitos sociais que as consomem.
Não estamos aqui julgando se existem usos e escutas musicais mais apropriados que outros, supondo que, por serem mais próximos daquilo que pensou artista e produtores no campo da autoria, seriam, portanto, apropriações mais legítimas. Ao contrário, estamos atentos ao que de inusitado e múltiplo parece surgir quando nos abrimos a perceber as formas variadas de escutar dos sujeitos comuns, não músicos, não especialistas, que fazem uso de músicas em sua vida como recurso de construção de imaginários de si, auto-identidades e pertencimentos coletivos de representação e ação social.
Estes dois fatos narrados nos fazem pensar, por um lado, sobre o papel das canções na vida social e no seu uso pelos sujeitos sociais e, por outro lado, nas relações que os jovens mantem com o passado, com o futuro e com a própria temporalidade. Articulando estes dois pontos, temos a questão principal que aqui queremos discutir nesta pesquisa em fase inicial: a apropriação e escuta das canções dos anos 1980 feita por jovens em pleno século XXI e as relações que isso mantem com as formas de sentir e pensar o tempo, fornecendo indícios sobre as formas de relação entre passado, presente e futuro. Isso vem sendo pensado em conjunto e articulação com formas mais amplas de consumo de objetos e imaginários daquele momento histórico, incluindo roupas, filmes, estética, imaginários políticos, entre outros aspectos. E isso remete-nos também a uma discussão sobre nostalgia, imaginários sobre o passado, regimes de historicidade (Hartog, 2013) e noções de temporalidade em jogo na atualidade. Temos assim, 2013 olhando e escutando os anos 1980 e estes, refletindo este olhar e escuta, devolvendo e trazendo possíveis conhecimentos e interpretações a 2013.
Como foco de pesquisa, temos as narrativas destes jovens sobre suas escutas musicais, a forma como elaboram construções discursivas sobre suas vidas, trajetórias, identidades e desejos usando as canções referidas como “sistemas peritos” (Amaya, 2004) que servem para articular, construir, elaborar o que pensam de si, o que buscam mostrar de si socialmente, dando conta das vidas vividas, ações individuais e coletivas, ações midiáticas e performativas, enfim, de aspectos do ser jovem na atualidade das grandes metrópoles com forte presença midiática. Longe de pensar que as canções populares e massivas tenham apenas um valor efêmero, de consumo imediato, fadada ao rápido esquecimento, argumentamos que a relação entre canção e escuta, produto e consumo pode durar anos (Mendívil, 2013), refazendo-se, ganhando sentidos diferentes, entrando no jogo complexo da lembrança e do esquecimento, da restituição do passado no presente, tendo que levar- se em conta seu caráter histórico, sua historicidade, suas apropriações em tempos e espaços específicos.
A seguir, discutiremos a base metodológica aqui adotada, que tem na questão da narrativa o seu norte, tomando como pressuposto que estas nos ajudam a compreender as identidades juvenis que são construídas nas mediações entre as músicas e seus usos cotidianos. Em seguida, faremos uma reflexão de fundo com base no campo da História, sobre as relações entre memória, historicidade, temporalidade, para melhor compreendermos os fenômenos que mostram-se presentes na pesquisa em tela. Música, escuta e narrativa que Segundo Jose Amaya (2004), baseado em Giddens e sua noção de sistemas peritos, temos
os sistemas peritos [são] modos de conhecimento técnico que se estendem às próprias relações sociais e à intimidade e aos quais se recorre para realizar a experiência reflexiva de si (…) cada vez mais as indústrias midiáticas podem considerar-se parte destes sistemas peritos.(Amaya, 2004, p. 81 – tradução minha)
Nesse sentido, as canções, por exemplo, assumem este papel na reflexividade social (Giddens, 1991), onde suas letras, sons, arranjos, ruídos ajudam a construir sentidos, a fazer os sujeitos pensarem e repensarem suas identidades constantemente, ligando suas vidas àquelas narradas nas músicas. Assim, o que estamos falando, a partir de Giddens, é que as transformações advindas com a Modernidade tardia não se dão apenas num plano geral ou global, mas no plano da identidade individual ou da intimidade (Giddens, 1993). Esta transformação da intimidade envolve, entre outros aspectos, uma relação intrínseca entre as tendências globalizantes da modernidade e eventos localizados na vida cotidiana —uma conexão dialética, complexa, entre o “extensional” e o “intensional” e a construção do eu como um projeto reflexivo (Giddens, 1999), uma parte elementar da reflexividade da modernidade, em que um indivíduo deve encontrar ou elaborar sua identidade entre as estratégias e opções fornecidas pêlos sistemas abstratos ou peritos.
Esta narrativas juvenis que buscamos, requerem uma metodologia que combina etnografia em locais de encontro, escuta de canções e dança como também entrevistas dirigidas ou depoimentos espontâneos por meio do Memorial do Consumo6. Este é um museu virtual interativo, ligado ao PPGCOM-ESPM/SP, onde exerço curadoria, e que tem como foco as memórias e narrativas de sujeitos receptores/consumidores sobre o universo do consumo articulado às suas histórias de vida. Funcionando como um site interativo, os internautas são convidados a livremente gravar ou enviar seus depoimentos sobre temas livres ligados ao consumo, ou dirigidos à temas específicos que dizem respeito às pesquisas dos professores e pesquisadores ligados ao PPGCOM.
A socióloga inglesa Tia DeNora (2000) traz importantes contribuições para pensar nas vantagens do método de usar narrativas sobre a escuta musical e, mais, para a reflexão sobre a entrevista com ouvintes não-músicos como possibilitadora da compreensão sobre as subjetividades e sobre o uso da música (aesthetic reflexivity) como “tecnologia de si” (self technology), ou seja, como elemento de que lançam mãos os sujeitos para expressarem e construírem identidades, afetos, sentidos de auto-identidade (self identity) na vida social. Baseada em Giddens (1991), DeNora avança no debate sobre os sistemas peritos e reflexividade na modernidade e as formas de construção de subjetividade e de gestão da intimidade em contextos atuais, urbanos, cosmopolitas.
A narrativa é aqui pensada como instrumento teórico e metodológico, como categoria epistemológica e esquema cognitivo (Vila, 1996) capaz de referir-se às formas com que atores sociais concretos se apropriam das canções. Nas narrativas, os indivíduos buscam construir um sentido, uma coerência para suas vidas, articulando passado, presente e futuro na forma de metas e desejos, construindo tramas argumentativas seletivas em que real e imaginário, memórias voluntárias e involuntárias, esquecimentos, silêncios se compõem de maneira complexa trazendo à tona as construções identitárias nas quais as músicas exercem papel de artefato cultural privilegiado para as construções de si e dos outros. Identidades narrativas, no dizer de Ricoeur (1985), que são construídas e podem ser percebidas nas especificidades das “histórias de vida”, pois ao rememorar a sua trajetória, há um esforço de construção de sua própria identidade, num resultado de apropriação simbólica do real, lembrando e omitindo passagens de sua vida, fatos, atos, construindo sentidos.
Paul Ricoeur, em Tempo e narrativa (1985), faz a ponte entre os estudos sobre linguagem e estudos sobre a ação buscando compreender o homem agindo no mundo e avaliando-se eticamente a partir da palavra e das ações. Em outras palavras, o autor busca a elucidação da experiência humana através das mediações da linguagem e dos símbolos. Daí nasce a idéia de identidade narrativa, um aprofundamento na compreensão da noção de sujeito, que estava tão desvalorizado pelo pensamento estruturalista. “Sem o auxílio da narração”, diz ele, “o problema da identidade pessoal está, de fato, fadado a uma antinomia sem solução” (p. 315). As noções de narrativa, tempo e memória advindas das discussões hermenêuticas de Paul Ricoeur se mostram como importantes contribuições para a interpretação das narrativas de si elaboradas pelos sujeitos que narram suas experiências de consumo e escuta musical. Segundo o filósofo, o tempo só se torna humano por meio da narrativa, permitindo a construção da memória (no seu jogo de lembranças e esquecimentos, aspectos voluntários e involuntários) e das identidades, dando sentido às trajetórias de vida dos sujeitos.
Ao contar suas vidas, os ouvintes constroem-se como sujeitos de sua própria história, em que as canções entram como aportes para salientar aspectos, marcar fatos importantes, ajudar a compreender motivações que os levaram a uma ação ou caminho e não outro, expressar o que buscam e almejam para sua vida privada, suas relações amorosas, suas inquietações geracionais, as ansiedades em relação ao futuro e para sua vida em geral.
Ao contar suas vidas, os ouvintes constroem-se como sujeitos de sua própria história, em que as canções entram como aportes para salientar aspectos, marcar fatos importantes, ajudar a compreender motivações que os levaram a uma ação ou caminho e não outro, expressar o que buscam e almejam para sua vida privada, suas relações amorosas, suas inquietações geracionais, as ansiedades em relação ao futuro e para sua vida em geral.
Memória, temporalidade, historicidade
Cabe também destacar outro aspecto que nos chama atenção nesta pesquisa e que, ao que parece, é fundamental para a compreensão do fenômeno aqui interpretado. Trata-se dos imbricamentos entre memória, presentismo, noções de temporalidade e historicidade. Ou seja, como interpretar este saudosismo dos jovens por uma época que não viveram? Por que os anos 1980 ganham este papel de momento que se quer buscar numa linha imaginária que projeta o passado no presente, ou o “futuro passado” (Koselleck, 2006)? Que “regime de historicidade” (Hartog, 2013) é este em que embora haja um presentismo (no sentido de hegemonia do presente) muito grande na atualidade, haja também a nostalgia, uma certa mania de memória e preservação (Huyssen, 2000) de objetos retrô, vintage, etc? Que relações entre passado, presente e futuro se estabelecem aqui entre estes jovens, dando uma idéia das noções de temporalidade e tempo histórico na atualidade? Ainda que inicialmente, tentaremos responder estas questões a seguir.
Talvez não seja despropositado pensar nas relações entre o que expusemos até aqui (a década e 1980 como referência temporal na atualidade) com as discussões e debates surgidos também naquele momento, quando noções como Pós-Modernidade ganharam força nas discussões filosóficas e das ciências humanas e sociais de maneira mais ampla. Algo ali já apontava para formas de pensar o tempo histórico, numa relação peculiar entre passado/presente/futuro. Como sugere Huyssen,
desde os anos 70 do século XX, assistimos (…) à restauração historicista dos velhos centros urbanos, à paisagens e pequenas cidades inteiras transformadas em museus, à diversos empreendimentos para proteger o patrimônio e o acervo cultural herdados, à onda de novos prédios para museus que não mostra sinais de retrocesso, ao boom da moda retrô e de móveis que reproduzem e imitam os antigos, ao marketing massivo da nostalgia, à obsessiva “automusealização” através das câmeras de vídeo, à escrita de memórias e confissões, ao auge da autobiografia e do romance históricos pós-moderno com sua instável negociação entre fato e ficção; à difusão das práticas da memória nas artes visuais, com freqüência centrada no meio fotográfico; e ao aumento dos documentários históricos na televisão. (Huyssen, 2002, p.5 – tradução minha)
Fredrik Jameson (1996), observando a pós-modernidade como lógica cultural do capitalismo tardio, também salientou estes fatores aludidos por Huyssen. Ressaltou especialmente a idéia de simulacro do tempo histórico, onde o próprio passado é modificado não numa busca da ressurreição de vozes apagadas ou num retroceder para reorientar o futuro, mas sim para a formulação de uma vasta coleção de imagens ou simulacros fotográficos, sendo este passado apenas um conjunto de espetáculos empoeirados, um “pastiche”. Corroborando com este debate, Gilles Lipovetsky (2004) argumenta ainda que nos tempos hipermodernos assistimos a um revivescimento do passado, consubstanciado num frenesi patrimonial e comemorativo, numa valorização e celebração do antigo que nos leva a uma hipermemória, onde se aliam interesses financeiros, midiáticos, turísticos, materializando uma indústria da memória, do passado e do patrimônio histórico que elaboram produtos para o consumo cultural e material.7 Enfim, a forte presença da memória, do patrimônio e das comemorações salientam uma certa relação que nosso mundo global do século XXI resolveu estabelecer com o tempo.
Por isso é que Andréas Huyssen argumenta – frente a um certo senso comum que diz que nossa época é marcada por uma amnésia do passado – que vivemos “seduzidos pela memória” (Huyssen, 2000), apresentando fenômenos que já se mostram capitalizados por interesses comerciais, assim como uma mania de preservação, vista no boom dos museus, memoriais e arquivos. Entretanto, segundo ele, apesar da “demasiada memória”, vivemos e sofremos de uma amnésia histórica, dentre outros fatores, devido a um certo olhar profundamente a-histórico advindo do debate Pós-Moderno e Pós-Estruturalista, por sugerirem – juntamente com a morte do autor – a morte da História, no sentido de uma perspectiva processual e diacrônica dos acontecimentos. Voltaremos a esta questão sobre a História mais à frente.
Segundo Huyssen (2002), a transformação do passado em mito e o boom da memória tem a ver também com uma certa percepção do mercado ou setores não-acadêmicos de que o passado é mais rentável financeiramente que o presente e o futuro. Beatriz Sarlo (2007), colabora com esta discussão, salientando que o antigo se apresenta hoje como forma de legitimação, considerado sempre melhor (ao menos nos discursos), possuidor de “uma história” e por isso, mais verdadeiro, legítimo, autêntico, revestido de um novo fetichismo.
Mais ainda, esta guinada rumo ao passado e a inflação de memória se relacionam com a presença cada vez maior das mídias, tanto por sua capacidade armazenar e guardar elementos do passado (ainda que muitos críticos acreditem serem as mídias as culpadas pela falta de memória na atualidade), como pelo fato de fazer circular, em velocidade inaudita, imagens e sons, captando presentes, tranformando-os em “momento histórico”, que já se transformam rapidamente em um passado em imagens a serem consumidas.8 Em outras palavras, as atuais transformações no imaginário temporal têm a ver com a presença virtual de tempos e espaços variados em composição com os temos e espaços “reais”.
Voltando aos nossos jovens que se aprazem em consumir sons, vozes e imagens de um passado recente dos anos 1980, imperioso compreender que características ou aspectos da atual sensibilidade temporal estão presentes em suas práticas. Pierre Nora (1993) – em obra que marcou época no campo da História na França nos anos 1980, Les lieux de memóire – alertava que a aceleração da história trouxe uma ruptura com o passado e a experiência, sendo a preocupação com a memória um indício e, ao mesmo tempo, uma busca de solução para isso; ou seja, a memória é um instrumento presentista. Não buscamos aqui recorrer ao discurso da perda, ou de uma “aceleração da história” que não permite mais o tempo de lembrar e impõe a construção de “lugares da memória” que compensariam a memória perdida, mas imprimir uma direção diferente no pensamento, que aceite estas mudanças nas experiências, percepções e sensibilidades sobre o tempo. Embora a demanda pela memória seja sintoma de uma certa crise de nossa relação com o tempo, ela pode ser também uma maneira de tentar responder a este dilema temporal; se as ligações com passado parecem ter se rompido, a nostalgia e a busca por trazer elementos memoriais de outras épocas não necessariamente trazem apenas um passado falsificado, mas a possibilidade de um passado reapropriado, transformado ativamente pelo movimento mesmo da rememoração ativa.
François Hartog (2013) chama as percepções da temporalidade de “regimes de historicidade”, criando condições para situar o tempo presente no tempo, isto é, em relação ao passado e ao futuro. Dentro de uma tendência historiográfica que vem se chamando nos últimos anos de “história do tempo presente”9, Hartog mostra-se atento ao contemporâneo e ao presente (contrariando fortes linhas “passadistas” e de hegemonia das fontes escritas dentro do campo da História), ocupando-se em pensar sobre os usos políticos do passado e nos testemunhos memoriais. Em outro artigo (Pereira e Campos, 2012), já enfatizamos – de acordo com Nora (2009) e Sarlo (2007) – a guinada ocorrida no campo da História e das Ciências Sociais em busca dos relatos testemunhais, reconhecendo seu valor e dando-lhes legitimidade como fontes que narram o passado, surgindo como outras vozes, plurais, que minam as visões hegemônicas, nacionais, vitoriosas, trazendo à tona a questão dos usos do passado no presente. Resta-nos aqui apenas lembrar que também está presente neste debate das últimas décadas estas noções sobre a valorização do testemunho memorial, algo que nos atrai apenas por isso, mas porque nos interessa como premissa teórico-metodológica da pesquisa em tela neste artigo. Testemunhos meorialísticos como mais um elemento para a compreensão que buscamos sobre os sentidos da temporalidade e dos regimes de historicidade em jogo hoje.
Presentismo e regime de historicidade são dois termos correlatos e convergentes na reflexão que faz Hartog sobre o tempo e os sentidos de temporalidade. Por regime de historicidade ele entende as formas de traduzir e ordenar as relações e as experiências que temos do tempo e com o tempo, podendo ajudar em momentos de “crise do tempo”, como diz Hartog, quando as relações entre passado, presente e futuro mostram-se de maneira não evidentes, borradas, assimétricas.
Assim, apresenta três regimes de historicidade dominantes na história ocidental: o da Historia Magistra, relativa aos gregos e sua épica de narrar feitos ilustres, priorizando o passado, tendo sido vigente pelo período medieval até o início do mundo moderno ocidental; o da Modernidade, inaugurado com a Revolução Francesa que, ao romper com o passado de forma radical, traz outras formas de valorização do presente e do futuro, inaugurando uma certa teleologia evolutiva nas formas de pensar o tempo; e o atual, nomeado de Presentismo, relativo ao que considera a atual “crise do tempo”, um colapso da experiência do tempo, que tem como marco a queda do Muro de Berlim, em 1989.
No presentismo, não mais o futuro em sua hegemonia a projetar os anseios de progresso e evolução da história humana, mas um presente absoluto, estimulado pelas mídias e seu excesso de imagens e fatos em “tempo real”, transformando tudo em acontecimento; pelas inovações tecnológicas e a lógica do consumo que torna os homens e as coisas rapidamente obsoletos; como também pelas crises que nos tornam, de alguma maneira, homens sem futuro, onde o presente mostra-se como a única certeza, num mundo de futuros incertos, perigosos e ameaçadores. É o presentismo, assim, uma outra modalidade de ordem do tempo, um regime distinto de historicidade, onde memória e patrimônio – trazendo uma pluralidade de relatos que fragmentam os relatos únicos das nações e dos vencedores – mostram-se palavras-chave e nos instigam a perguntar de que ordem do tempo estes termos seriam a tradução e seu questionamento, indiciando uma certa crise do tempo em que paradoxalmente a urgência do presente convive com uma valorização e até mitificação do passado.
Em síntese, para Hartog entram em jogo nesta modalidade de temporalidade que é o presentismo a baixa das história nacionais (ao estilo da Modernidade) e a alta das memórias múltiplas e dissidentes, do patrimônio (que recusa o progresso e se apraz como o monumento) e das comemorações e efemérides, trazendo uma cultura da memória com a celebração das identidades. Não podemos esquecer que muitas das reflexões de Hartog dialogam proximamente com as noções de Koselleck (2006) sobre o campo de experiência (o passado) e os horizontes de expectativas (o futuro), estando entre eles o que chamamos de presente, analisado pelo historiador como tempo histórico. Neste tempo histórico analisado, deve-se levar em conta aquilo que se mostra como experiência trazida dos tempos pretéritos e a presença, no próprio presente, de elementos do devir, daquilo que está no horizonte de anseios, desejos ou possibilidades do porvir, indo além do binômio prognóstico e diagnóstico do tempo histórico.
À guisa de conclusão
Retomando nosso ponto de partida, parecem úteis estas considerações de Hartog e Koselleck para nos auxiliar a compreender o regime de historicidade presente nos gostos musicais e de consumo cultural mais amplo dos jovens que buscamos analisar. Suas preferências por uma passado situado nos anos 1980 nos revelam uma certa construção de temporalidades, regimes de historicidade, espaço de experiência e horizonte de expectativa na atualidade e particularmente entre os jovens, onde paradoxalmente memória, nostalgia, entretenimento e presentismo mostram- se em conflituoso jogo, apontando tanto para idealizações quanto para re-apropriações do passado. E este último ponto é onde tentaremos nos focar, compreendendo que a busca pelo passado, por ícones da memória e dos patrimônios não precisam ser vistos exclusivamente ou necessariamente como um “passadismo” vazio e a-crítico, podendo apontar para outras formas de construir o presente e o futuro, inaugurando outros jogos entre as categorias temporais. Como sugere Huyssen (2002), a celebração do passado e elaboração de museus e memoriais tanto podem servir como “câmaras sepulcrais do passado, como também lugar de ressurreições possíveis” (p.45), pois por mais que se tenha (na maioria das vezes) uma ordem simbólica dominante, há sempre um excesso de significado que transborda as fronteiras ideológicas estabelecidas, abrindo espaços para a reflexão e para memórias anti-hegemônicas. Esta perspectiva pode nos ajudar a compreender o consumo de um passado e de seus elementos específicos, numa política da memória e dos jogos de temporalidades ao interrogarmos os anos 1980 em sua representatividade simbólica.
Sem o pessimismo de muitos que vêem nesta busca pelos 80`s apenas falta de consciência histórica, interesse mercadológico ou afirmação de passados hegemônicos, tentamos enxergar e escutar o caráter político, performativo e estético destas apropriações juvenis da cultura e do consumo (Rocha e Tangerino, 2010), onde estes jovens atuam como agentes sociais de suas narrativas e práticas materiais e simbólicas, não podendo ser vistos apenas como objetos de discursos moralizantes ou normativos sobre o seu “dever ser”. Na perspectiva de analisar as narrativas dos próprios jovens sobre o seu consumo musical, temos em conta que o esquecimento (Pollack, 1989), as lacunas, os silêncios aparecem tanto quanto as lembranças voluntárias e recorrentes, devendo ser levados em conta numa complexa dinâmica. Atentar para estes ocos dos discursos e narrativas pode fazer surgir outras configurações de temporalidade, que não apenas aquela dos que criticam o vazio celebratório, nostálgico, a-critico e mitificador do passado. Auscultar a memória possui uma dimensão e um caráter político e não apenas celebrativo, trazendo à tona memórias reais de sujeitos que podem assumir sua fala, leva-la a público, tendo direito à visibilidade e à audibilidade de sua versão e de sua ação social; uma possibilidade, por via da operação da reminiscência, de alcançar passados restituídos (para lembrar Walter Benjamin), não em si mesmos ou como algo estático, cristalizado e por isso morto, mas como algo vivo e dinâmico, propulsores de ações críticas no presente e futuro.
Neste sentido, as canções surgem como um recurso de que os jovens podem lançar mão para regularem suas próprias vidas como agentes estéticos (DeNora, 2000, p.62), em sentimentos, pensamentos e ações. A memória é outro elemento importante neste processo uma vez que a lembrança é individual, mas também coletiva, trazendo à tona experiências passadas para exprimir a identidade que se tem e se quer hoje. A música vai mostrandose- como dispositivo para o processo reflexivo de lembrança, esquecimento e construção que estes jovens fazem de si mesmos, uma “tecnologia” que faz explodir o continum dos relatos, ao qual invoca-se tantas vezes, aos construirmos nossa narrativa de trajetória de vida. Musica e memória numa coreografia de sentimentos e como mediadoras entre passado, presente e futuro, um “medium temporal” (DeNora,
2000, p.66). “Temos nosso próprio tempo” – além de famosa canção dos anos 1980 e com forte presença ainda hoje entre muitos jovens – parece expressar uma particular construção juvenil de temporalidade e que aqui queremos alcançar, daí sua escolha como título deste artigo.
Referências
AMAYA, José Fernando Serrano. Menos querer más de la vida – concepciones de vida y muerte en jóvenes urbanos. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2004.
DENORA, Tia. Music in everyday life. Cambridge: Cambridge Univesity Press, 2000.
GIDDENS, Anthony. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late Modern Age. Stanford University Press, 1999.
A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: UNESP, 1993.
As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.
HARTOG, François. Regimes de historicidade – presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013.
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