A dominação pela etiqueta: dimensões ideológicas de um guia gastronômico para torcedores corintianos.

Por Luiz Peres-Neto e Felipe Tavares Paes Lopes 

 

Introdução

“Enfim, a América.” Com estas palavras, estampadas sobre uma foto dos jogadores do Corinthians celebrando a vitória contra o Boca Juniors, da Argentina, a edição de 5 de julho do jornal Folha de S.Paulo destacava a conquista do primeiro título corintiano da Copa Libertadores da América, principal torneio de clubes de futebol da América do Sul. Como foi destacado pela imprensa, este foi um dos momentos mais marcantes da história do centenário clube paulista e da vida de seus milhões de torcedores. Simultaneamente às comemorações, foram publicados, em diversos veículos de comunicação, anúncios de pacotes de viagem para o Japão, onde o clube paulista disputaria, em meados de dezembro de 2012, o Campeonato Mundial de Clubes, organizado anualmente pela Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA). A paixão pelo clube, a euforia pela conquista do inédito título sul-americano e a expectativa de triunfar no Mundial motivaram milhares de corintianos a atravessar o mundo para assistir ao torneio. De acordo com o que foi veiculado no período, entre quinze a vinte mil corintianos acabaram viajando até o Japão.

Nocorinthians-3 entanto, muito antes de a chamada “invasão corintiana” acontecer, a imprensa já dava ampla cobertura ao evento, publicando diversos textos sobre os torcedores que iriam à Terra do Sol Nascente: os sacrifícios feitos por eles e suas expectativas em relação ao torneio2. Paralelamente à publicação desses textos, também foram veiculadas diversas matérias ensinando os torcedores a como lá se comportarem; em especial, depois de o Consulado Brasileiro em Tóquio ter publicado, no final de novembro de 2012, o “Guia do Torcedor”, que se propunha a explicar a cultura japonesa aos torcedores do Corinthians, bem como a fazer algumas advertências. Por exemplo, de que “o japonês é avesso a mal-entendidos, não tem atitudes violentas e não lança mão de artifícios para resolver problemas. Não existe o “jeitinho brasileiro” no Japão.” (GUIA DO TORCEDOR, 2012: 4).

O material preparado pelo governo brasileiro ganhou amplo espaço na imprensa, fazendo com que a presença do Corinthians no Japão fosse também objeto de agendamento em diversas editorias: além da esportiva, na de política, viagem, economia, cotidiano/atualidade e gastronomia – em um nítido processo de agenda- setting (McCOMBS, 2006). Cabe destacar que outros clubes brasileiros – como o São Paulo, Grêmio, Santos, Internacional, Palmeiras, Cruzeiro, Flamengo e Vasco – estiveram disputando o mesmo torneiro Mundial ou edições similares no Japão e nunca foi editada uma cartilha consular. O ineditismo da iniciativa e o conteúdo da mesma chamou a atenção da imprensa brasileira.

Em certa medida, a publicação do “Guia do Torcedor” ensejou a produção de matérias que exerceram a função de “mediadores interculturais” para os torcedores do Corinthians, dado que elas buscaram, através de uma série de estereótipos, traduzir para esse público a cultura e os costumes japoneses. Como expõe Rodrigo Alsina (1999), a partir do momento em que se detecta, em um processo comunicativo, que os universos culturais dos indivíduos implicados são divergentes, nos deparamos com a “comunicação intercultural”, que pode tanto facilitar a compreensão como a incompreensão de discursos interculturais.

Uma primeira leitura dessas matérias nos sugere que se tratam de úteis manuais de etiqueta, que oferecem valiosas dicas para os torcedores/ viajantes que se depararão com um contexto cultural diferente. Contudo, uma leitura mais atenta (e crítica) indica que, para além dessa utilidade, tais matérias dizem muito sobre como a imprensa brasileira enxerga a si própria, como ela enxerga os estrangeiros (em particular, os japoneses) e, principalmente, como enxerga o brasileiro (em particular, o torcedor corintiano). Neste sentido, essas matérias constituem um valioso objeto para a análise de temas como construção de estereótipos, formação de preconceitos e estabelecimento de ideologias.

Diante da relevância de tais matérias, optamos, neste trabalho, por selecionar e analisar aquelas veiculadas na edição do dia 28 de novembro de 2012 do caderno Comida, da Folha de S.Paulo. A escolha por estudar um suplemento gastronômico não foi fortuita e está qualitativamente justificada. Afinal, conforme destaca Norbert Elias (1994), as maneiras de comportamento à mesa definem e estruturam boa parte do que o pensamento ocidental legitima como culturalmente aceitável. Ao analisarmos tais matérias, buscamos responder a seguinte questão: se, em que medida e como elas podem ser consideradas uma produção ideológica, estabelecendo e sustentando relações de dominação? A partir da obra de John B. Thompson (2000), definimos ideologia como sendo o sentido a serviço da dominação, entendendo por dominação relações de poder que são sistematicamente assimétricas. Nas palavras do autor, podemos falar de dominação “[…] quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal exclusão é levada a efeito” (THOMPSON, 2000: 80).

 
 


 
Este artigo foi publicado originalmente na Revista Comunicação Midiática, da FAAC/Unesp v.8, n.3, pp.108-123, set./dez. 2013.
O artigo completo pode ser encontrado em pdf, aqui: .PDF

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