A força da vendinha

Quero convidá-lo, caro leitor, a uma reflexão sobre as marcas de bairro. Será que você tem alguma memória afetiva ligada a um desses estabelecimentos? A cantina da escola, a lojinha de doces da rua, o bazar tem-de-tudo no caminho da escola, o carrinho do sorvete, a feira livre, a mercearia do bairro, a locadora da adolescência…
Lembro com carinho da vendinha do meu primo Lelo (apelido para Aurélio), que ficava na rua onde moravam meus avós, em Portugal. Tudo ali era mágico: as pessoas me tratavam pelo nome, sorriam, tinha embalagens e produtos diferentes dos que via em meu dia-a-dia, no Brasil, e cheiro de pêssego no ar. Mas o mágico mesmo é que lá eles davam as coisas, de graça. Explico.
Como mencionei, a venda era do meu primo. Era comum minha avó perceber que faltava algo e dizer para eu ir correndo pegar na venda. Eu ficava esperando a avó dar o dinheiro para as compras, ao que ela respondia: “Não precisa; é só ir lá e pedir pro Lelo que ele dá.” Então eu voltava para o Brasil maravilhada, na minha imaginação fértil de menina, que em Portugal tinha uma lojinha “que vendia de graça!” (sic).
Havemos de concordar que alguns estabelecimentos de bairro desenvolvem mesmo uma aura mágica, mística…  O fechamento da HM Home Vídeo, no bairro paulistano de Higienópolis, por exemplo, ganhou cobertura emocionada em diversos jornais da capital. Um caso mais conhecido foi o do quase fechamento do Cine Belas Artes, nas imediações do centro de São Paulo.  Quem diria que legiões de fãs se uniriam em manifestações e “vaquinhas” para manter o espaço de pé, até que alguma grande marca pudesse salvar o espaço. Quando a Caixa Econômica Federal reabriu o cinema, teve até festa, mas só um pequeno problema: o nome do patrocinador (Cine Caixa ou Caixa Belas Artes) nunca pegou. É Belas Artes e pronto. Antiguinho e ponto. Amor de paulistano da gema e pronto.
No livro La era del consumo, Luis Enrique Alonso – de mãos dadas com Ronald Barthes e suas obras sobre a mitologia dos alimentos – dedica todo um capítulo à análise das lojinhas de produtos frescos. Para Alonso, “Os comércios tradicionais encontram, na venda de produtos frescos, uma união forte, que traduz, no nível imaginário, a tradução do melhor em termos de estilo de vida com o melhor da alimentação e que se opõe – ou pelo menos compensa – o pior da artificialidade, massificação e tecnocracia. Os ritmos e as simbologias ligadas a essa compra situam o pequeno comércio como baluarte de confiança e mediador cultural de produtos com procedência,  afiançando-o como representante de um capital simbólico, cultural e relacional. (…) A curadoria dos produtos, a cuidada apresentação dos espaços, a disponibilidade e personalização no tratamento, o conhecimento dos itens oferecidos e de sua procedência (o que leva a uma implícita garantia e responsabilidade sobre eles) e preços moderados ajudam a formar uma representação social apreciada popularmente, em contraponto à imagem atribuída à industrialização, ao anonimato e ao gigantesco dos espaços de vendas massificados. Os produtos são bons para comer porque foram bem pensados, bem comunicados, bem considerados. E essa significação depende da intersubjetividade da relação face-a-face.”   (ALONSO, 2005, p. 282-283 – tradução minha)
Buscando investigar a aura que envolve alguns dos pequenos comércios, em 2014, a Interbrand, uma consultoria global de branding, perguntou em sua página no Facebook quais marcas que os paulistanos consideravam as melhores marcas da cidade. A essas marcas de bairro a consultoria aplicou os princípios de avaliação de valor de marca utilizados para definição do ranking anual das marcas mais valiosas do mundo (Best Global Brands). O resultado, chamado de Best Bairro Brands,  demonstrou que, em certos pontos, as marcas de bairro até gozam de uma posição privilegiada para encantar os clientes, em um mundo tão saturado de concorrência. Mas não nos equivoquemos: o poder das marcas de bairro não reside em contrariar as estratégias de marketing e as lógicas do consumo, mas em entendê-las e utilizá-las tão sabiamente, que por vezes, seus consumidores até se sentem em uma espécie de tempo-espaço paralelo, anterior ou fora da cultura de consumo como conhecemos.
 
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Para explorar mais, acesse:
Estudo: Best Bairro Brands
A última vendinha
https://vejasp.abril.com.br/blog/arnaldo-lorencato/memoria-thrassyvoulos-georgios-petrakis-1918-2016-o-seu-trasso-do-acropoles/
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