A materialidade dos “invisíveis”

 

materialidadeComo mercado consumidor, por muito tempo, os grupos das classes socioeconômicas D e E eram praticamente “invisíveis”, não considerados nas pesquisas de mercado, fora dos targets dos planejamentos de mídia. A não ser para as empresas do grupo Silvio Santos, que desde sempre tiveram como princípio, vender ‘pouco’ para muitos … e vender sempre (um verdadeiro pecado era deixar de pagar o carnê do Silvio Santos e perder a chance de ser premiado em seu programa dominical). Também para as Casas Bahia, de propriedade de Samuel Klein. Um precursor do crediário para pessoas de baixa renda, começou como mascate de rua, vendendo roupas de cama mesa e banho, abriu uma loja que atendia as necessidades de um contingente de migrantes nordestinos que chegavam à região do Grande ABC, em busca de um futuro nas indústrias automobilísticas que aí se instalavam, e precisavam mobiliar seus pequenos lares.

Mas tudo isso são histórias mais que conhecidas. Apenas as citei para ilustrar o que aqui quero discutir: a perspectiva do consumo como algo natural do ser humano, a partir do que tornamos visível nossa condição como cidadãos, atores sociais. O consumo insere o indivíduo-sujeito na sociedade pela instância da cidadania, da modernização, da sociabilidade compartilhada. Como toda força, tem seu lado ‘negro’. Um caso extremo: os índios consumindo cigarros, bebidas alcoólicas, como processo de modernização, inserção, como já vimos retratado em documentários e filmes (só para lembrar … Bye, Bye Brasil). Mas a questão aqui é o aspecto simbólico disso. É por meio do caráter simbólico que o indivíduo-sujeito dialoga com a sociedade do seu tempo, informando seus interlocutores a respeito de sua identidade, seus hábitos, posicionando-se no mundo. Os indivíduos, como consumidores, ressignificam os objetos, atribuindo-lhes valores simbólicos. No consumo, buscam não só a funcionalidade, mas os valores culturais da sociedade em que vivem, promovendo estilos de vida, constituindo suas identidades.

E isso se aplica a todos os grupos. O ser humano, por natureza, é um ser social e se diferencia dos outros animais pela sua capacidade de pensamento abstrato. O desejo pelo “possuir” não é produto única e exclusivamente de “manipulações estratégicas mercadológicas”. Lembrando Slater, o que faz do consumo algo trivial, mistificador, ou passível de exploração, não é o fato de constituir-se uma ‘cultura’. Atribuir significados aos objetos além de suas funcionalidades ‘básicas’ não desmerece o processo de consumo. Se aos objetos são atribuídos determinados significados, ou vários significados, é porque isso responde a um tipo de sociedade, a uma forma de organização social específica, a uma necessidade daquela sociedade. Comer com as mãos, ou com uma colher, ou garfo, de inox, de prata, de plástico, de madeira, ouro, bambu, com este ou aquele design, vai ter um significado de acordo com as relações sociais estabelecidas pelos usuários com os materiais e formatos, com as relações feitas com as mercadorias.

Voltando à realidade brasileira, desde o levantamento de 1995/1996, os resultados do POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) vêm mostrando mudanças consideráveis no perfil de consumo do país. Já em 1996, os brasileiros apresentavam novos hábitos alimentares, comendo mais fora do domicílio – tanto em almoços e jantares como em lanches ligeiros. Em casa, substituem os pratos tradicionais por refeições rápidas, aumentando a preferência por alimentos preparados, pães, biscoitos e outros tipos de panificados. Agora na primeira semana de agosto, comentava-se os resultados de pesquisas do Data Popular que indicam que a massa de renda das famílias da classe D já ultrapassa a da classe B, sendo o foco do consumo alimentação dentro do lar, vestuário e acessórios, móveis, eletrodomésticos e eletrônicos, e remédios. Ou seja, promovidos os recursos financeiros (aumento do salário mínimo, os benefícios sociais, ampliação da geração de empregos formais) e as condições de acesso (fornecimento, distribuição, crediários), as pessoas consomem, buscando produtos que lhes tragam conforto. Pelas categorias de produtos consumidos, vemos que o primeiro foco de atenção é a diversificação na alimentação, uma expressão do desejo de ‘comer comida de rico’. E nisso não devemos ver apenas o lado de dominação. Consumir alimentos industrializados tem um significado de inserção na modernidade, naquela modernidade que talvez tenham visto nas telenovelas, ou nos outdoors. Ou mesmo na convivência com os outros grupos, nos ambientes de trabalho.

Emblemática é uma experiência que me contaram outro dia sobre a recepção feita por uma família de baixa renda, vivendo em um ambiente rural (um sítio), que ao receber a visita de pessoas da cidade, consideradas de um nível econômico superior, se desculpavam por não ter um suco artificial (Q-Suco, Tang) para oferecer. E o pomar carregado de suculentas laranjas.

Aqui vale lembrar a panela de pressão Clock, que ensinou as nossas avós a economizar gás; inserindo ainda o fator rapidez no preparo dos alimentos; os filtros para café Melitta, que trouxeram o conceito de praticidade e higiene para a prática do “fazer um cafezinho’, sinônimo de hospitalidade e sociabilidade na cultura brasileira; Kolynos ensinou a escovar os dentes; ao mesmo tempo que fixador para dentadura Corega só vai conseguir mercado anos após seu primeiro lançamento, uma vez que primeiro as pessoas tinham que aprender e se habituar a cuidar dos dentes, para depois pensarem em cuidar das “eventuais” próteses.

Lugar comum é falarmos de transformações, mudanças, identidades múltiplas, liquidez do consumo. Porém, é preciso problematizar os processos que nos tornam sujeitos-agentes, determinando posições sociais e identidades pessoais. Pensar as intersecções entre comunicação e consumo, perpassadas pelas condições de práticas de cidadania, construção de identidade, significações e ressignificações. Pensar o consumo como algo intrínseco à existência humana, realizado não só no ambiente urbano-capitalista, mas onde quer que haja bens materiais que se transformam em bens culturais pelas relações sociais. Pensar a cultura do consumo como uma das características básicas das sociedades pós-tradicionais, onde as necessidades materiais são contempladas pela produção alheia, mas dentro de um processo simbólico de atribuição de sentido que é individual e coletivo.

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