O não consumo de poesia

Sabemos que o consumo não se restringe ao ato de compra. O consumo é uma prática social que revela quem somos. O que uma pessoa consome, de artefatos materiais ou simbólicos, diz muito sobre ela. E se o consumo individual comunica, aquilo que uma sociedade não consome também expressa os seus valores e as suas crenças dominantes.

Assim, pelo não consumo, podemos também estudar a era em que vivemos. Pelo não consumo de poesia, por exemplo. Prefere-se consumir vorazmente discursos estereotipados, como os dos best-sellers, do que poemas epifânicos. O imaginário social se represa na estreiteza de rio, quando poderia tornar-se oceano. E isso vale para todo tipo de mercadoria: prefere-se a comida fast food à surpresa culinária – rima para o paladar. Prefere-se o toque no celular do que a carícia no outro – haicai deslizando na pele.

poesia

Quem consome versos como este de Fernando Pessoa, “Para voar não basta ter asas, é preciso ser livre”? Quem vê beleza em coisas simples como numa cebola, que Neruda, sempre evocado por Rubem Alves, definiu como “rosa de água com escamas de cristal”? Quem salta o pântano do excesso de clichês cotidianos para se embrenhar no território poético de um Manoel de Barros: “São Francisco monumentou as aves./ Vieira, os peixes./ Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos./ Charles Chaplin monumentou os vagabundos. (…) Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho”. Quem sente os pés no chão, ao ler este verso do mesmo Manoel: “Eu tenho doutorado em formigas”? Quem se toca ao chegar às últimas palavras, “E vinha a vida”, do conto “Os cimos” de Guimarães Rosa? Quem ainda consome versos como estes de Bashô: “O canto da cigarra/ nada revela/ que ela vai morrer”. Quem é capaz de se comover, como Vinicius de Moraes um dia, com este verso de Garcilaso, “por donde una agua clara con sonido”, que, em português, perderia seus sons de pura música? Quem está disposto a reconhecer o grito de Walt Whitman sobre os telhados do mundo em suas folhas de relva? E as flores do mal? E as pedras do caminho? E a morte e vida severina? E os poemas sujos? O mundo não consumido da poesia guarda um mar de histórias – Kathâsaritsâgara, como o chamavam os hindus.

E a poesia não está confinada nos versos. A poesia é, como nos lembra Oswald de Andrade, “a descoberta de tudo que eu nunca vi”. Levar nossos olhos para passear é abrir-nos para um admirável mundo novo. Quem hoje passeia seus ouvidos, sem pressa, pelo Adagio de Albioni? Ou pela nona sinfonia de Beethoven? Que ouvidos sorriem ao se deparar com “Jesus alegria dos homens” de Bach?

Não por acaso, Baudrillard dizia que nossa sociedade é narcisista. Narciso não se preocupa com os demais. E a poesia só existe no contato com o outro, espelho que reflete a sua impermanência e refrata a sua solidão.

Restrepo, em Direito à Ternura, critica o analfabetismo afetivo e ressalta a capacidade do homem de se emocionar, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos, resgatando a palavra splacnisomai, que, derivada de um verbo grego (já extinto) do Novo Testamento, significa “sentir com as tripas”. A poesia nos faz sentir visceralmente a si e ao outro. Um ponto de vista que Marx, tanto tempo atrás, já assumira, quando afirmou que o homem, antes de mais nada, precisava passar por uma educação dos cinco sentidos.

Quando chegará o tempo em que o povo comerá o biscoito fino fabricado por Oswald? Será mesmo, como dizia Maiakóvski, que o homem não está preparado para o júbilo?

O consumo nos faz pensar. E o não consumo de algo tão raro, quanto a poesia, nos faz sentir. Muito.

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