Esboços cartográficos: sobre carros, fotos e afetos

carrosMas eu nunca me pareci com isto! – Como é que você sabe? Que é este “você” com o qual você se pareceria ou não? Onde tomá-lo? Segundo que padrão morfológico ou expressivo? Onde está seu corpo de verdade? Você é o único que só pode se ver em imagem, você nunca vê seus olhos, a não ser abobalhados pelo olhar que eles pousam sobre o espelho ou sobre a objetiva (…) : mesmo e sobretudo quanto a seu corpo, você está condenado ao imaginário (Roland Barthes).

Assumo aqui minha inspiração pela obra de Barthes. E me proponho a navegar na confluência de duas vias: a vida cultural do automóvel e a história que recupero em minha memória. Nesse encontro de águas, localizo o consumo e a mim mesmo, refratado por um espelho que produzo e utilizo, aqui e agora. Appadurai indica o caminho: analisar as trajetórias das coisas é encontrar o ser humano inscrito nelas. Gravamos nossos afetos ao usar e imaginar as mercadorias (Appadurai, 2008: p.17).

Pretensiosamente, busco cartografar a mim mesmo. Sigo na direção apontada por Suely Rolnik:

Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago (Rolnik, 2007: p.23).

De início, vou ao encontro do Volkswagen, o beetle (besouro), o nosso fusca. Originado na Alemanha de Hitler, na década de 1930, o “carro do povo” (Volks Wagen) foi incentivado pelo ditador para servir a um país em recessão. O projeto populista de Estado se revelou totalitário, megalomaníaco, sanguinário. O automóvel, poucos anos depois de nascer, seria utilizado na Segunda Guerra Mundial pelo exército alemão. Com o fim da Guerra e a vitória dos aliados, passou a ser exportado, desembarcando nos EUA.

Esse mesmo carro é associado a uma espécie de revolução publicitária. No final da década de 1950, Bill Bernbach contrapôs a abundância associada à mobilidade, o prazer e o hiperestímulo dos grandes e dispendiosos automóveis, os desejos de consumo doamerican way of life. Revestiu de racionalidade e inteligência o consumo do VW: menos era mais, o “pensar pequeno” fez o beetlealcançar o sucesso em vendas e a publicidade alçar vôos mais altos. Mirar o mundo, sonhar a existência, demarcar os desejos e filosofar por meio dos objetos: os midiapanoramas publicitários seriam mais complexos a partir desse marco.

O Volkswagen chegou ao Brasil na década de 1950 e virou fusca. Moldou-se ao desenvolvimentismo da Era JK e seguiu caminhos transamazônicos no Brasil Grande da ditadura militar. Progressivamente conquistou espaço pela razão que motivou seu consumo: economia de combustível, resistência e desempenho, mecânica barata. Ganhou apelidos e se revestiu de afetos. Imagine: o transporte do povo alemão virou o carro dos brasileiros. Na década de 1970, tornou-se o mais vendido do mundo.

Nesse contexto minha história se entrelaça com a vida cultural desse automóvel. Para milhões além de mim, o fusca era o veículo da família dessa época. Era o carro de meu pai, que no rastro de memória se faz presente de novo. Lembro de uma foto. E com ela, de um ritual já esquecido: gostava de brincar no fusca estacionado na garagem. Sentava no banco do motorista e, parado, circulava pelo mundo que trazia na minha mente em formação: gigante, misterioso, sempre novo. A familiaridade estava na casa, nas pessoas que estavam sempre à volta. E no fusca de meu pai. Meu pai se confundia com o carro.

Em produtos residuais [as crianças] reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso as crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas. (Benjamin, 1995: p.19)

Não me lembro de quantos anos tinha: três, quatro, cinco… tampouco sei quem tirou a foto. Mas lembro que minha imaginação acelerava ali, à frente do volante. Brincava de circular sem limites, de fazer do carro o transporte para uma vida adulta que me parecia fascinante. Suspeito agora que também tentava desvendar, intuitivamente e sem sucesso, os mistérios daquele homem que partiu desta vida, poucos anos depois.

Volto ao lugar do adulto, no instante em que olho para minha foto, e me dou conta da distância. A trajetória desde esses tempos remotos não foi em linha reta, absolutamente. Sinto saudade daquele sol ingênuo que inundava meus dias. O sol da foto. E do olhar perdido em sonhos e pequenas preocupações da vida imediata. Os afetos em torno dos automóveis hoje são bem outros, em época de segmentação de públicos em comunidades de gosto, de problemas ambientais e colapso das metrópoles.

Para a maioria da minha geração, há um fusca estacionado na memória, este é o meu. Consumido e consumado.

Referências

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Rio de Janeiro: EdUFF, 2008, p.17.

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p.48.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única: obras escolhidas vol. II. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.19.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007, p.23.

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