A publicidade da Brahma e a cena midiática da Copa do Mundo de 2010: como o “espírito guerreiro” foi parar no Uruguai

Publicidade BrahmaA Copa do Mundo é um evento privilegiado para pensarmos sobre as representações sociais e o consumo. O jogo de futebol tem dois tempos, prorrogáveis por mais dois em caso de empate, afora os pênaltis; quando se trata da Copa como um todo, percebemos claramente as distinções entre três tempos: antes, durante e depois. Até aqui, nada de novo, diria o leitor mais impaciente. Concordo. Mas vale pensar a partir e além destas etapas óbvias, no deslizamento dos significados em torno das seleções nacionais.

O período anterior à Copa é o momento das expectativas, das potencialidades, das projeções. É a fase em que a cena midiática, predominantemente, adota um tom euforicamente exacerbado. Ufanista, no sentido de alimentar o entusiasmo de maneira totalizante, um sentimento que transborda das coberturas jornalísticas, das campanhas publicitárias, do clima construído que impacta no cotidiano dos torcedores, que, por sua vez, alimentam sonhos e se preparam para a festa. O que implica no consumo de camisas, bandeiras, até de bens duráveis como televisores. Um exemplo notório dessa fase é a campanha da marca de cerveja Brahma, patrocinadora oficial da seleção brasileira. Aproveitando o movimento dos discursos em torno da equipe, da frustração de 2006 – quando as “estrelas”, como Ronaldo, Roberto Carlos, Adriano, Ronaldinho Gaúcho, entre outros, foram acusados de não se empenharem pela vitória -, para a seleção de Dunga, que buscava ser a antítese dos significados associados aos derrotados, a Brahma explorou em uma série de comerciais o conceito de “seleção guerreira”. Em sua gênese, a campanha “o sabor de ser brahmeiro” vincula o espírito guerreiro ao brasileiro, ao trabalhador, como no comercial em que o cantor Zeca Pagodinho e o jogador Ronaldo “Fenômeno” dividem a cena com um gari, um garçom, um mecânico, todos a declamar a letra do jingle cantado originalmente por Zeca. Como diz o refrão: “eu sou brahmeiro amor / eu sou brahmeiro / sou do batente / sou da luta / sou guerreiro / eu sou brasileiro”. A identidade entre a cerveja, o sacrifício na luta diária do trabalho e o perfil da seleção que se prepara para a Copa de 2010 na África é amalgamada por filmes como o veiculado no final de 2009, chamado “lista de pedidos”, quando a torcida representada no comercial, a comunidade imaginada em torno dos brahmeiros lança seu grito de guerra: “Eu queria que a seleção fosse pra Copa como quem vai para uma batalha”, “eu quero jogadores que lutam no campo como a gente luta na vida”. Os “190 milhões de guerreiros” se dispõem a ir junto com a seleção para a luta. As metáforas bélicas talvez nunca tenham sido tão exploradas na publicidade em eventos esportivos.

O período “durante” a Copa é o momento de confrontação dos mitos alimentados pela mídia com a “realidade” dos jogos, das atuações, dos resultados. No caso da campanha da Brahma, um canal direto no Youtube aproveitava trechos de entrevistas e reportagens para realimentar o conceito construído anteriormente, a cada batalha dos “guerreiros”, juntamente com novos comerciais. Até a melancólica derrota para a Holanda, nas quartas-de-final: depois dela, um único vídeo encerra toda a euforia do discurso com a frase de abertura “seleção guerreira até o fim”, escrita em vermelho sobre fundo negro. As imagens coloridas do gol de Robinho são sucedidas por uma “falha” na transmissão, que passa a revestir de preto e branco os gols da virada holandesa, em câmera lenta. A tristeza da derrota na saída do campo de Kaká, cabisbaixo, e Daniel Alves, deitado no gramado, antecedem o dramático final: um plano geral do estádio colorido, que se transforma em preto e branco, a passagem das imagens para a tela escura, silenciosa, com um selo vermelho, que identifica a marca Brahma, em que se vê o emblema da seleção brasileira ao lado da frase: “Patrocinadora oficial da seleção mais guerreira”. A retórica da decepção é expressa nas escolhas das imagens, acabando por esvaziar a frase que dá ponto final mas não esgota o discurso. A seleção “mais guerreira” não produziu imagens fortes o suficiente para sustentar o espírito de batalha que a publicidade gravou na pele da seleção que patrocina.

No final, o troféu de seleção guerreira foi parar nas mãos do Uruguai

“Após bate e rebate dentro da área e boas defesas do goleiro Muslera, Suárez usa a mão para tirar a bola em cima da linha. Árbitro marca pênalti e expulsa o atacante do Uruguai – Foto Roberto Schmidt/AFP”. Fonte (acesso em 12/7/10)

O desenlace da Copa fez migrar aquilo que se esperava da seleção brasileira para uma esquadra hermana: a Celeste Olímpica. Entre as cenas mais emblemáticas da Copa da África do Sul, está a vitória dos uruguaios contra Gana em uma batalha que parecia perdida: no último lance da prorrogação, uma bola alçada na área quase decidiu a favor da seleção africana. Uma, duas, três tentativas, e na cabeçada que tinha a direção certa do gol a bola foi interceptada com a mão pelo atacante uruguaio Luis Suárez, o que ocasionou sua expulsão. Penalti no último lance da partida, a bola na trave e a chance perdida por Gana, seguida da comemoração vibrante, emocionada de Suárez, quando já se encaminhava para os vestiários. Tudo ganhou um contorno heróico. A seleção uruguaia foi às semifinais, perdeu seus dois últimos jogos para Holanda e Alemanha, mas, mesmo em quarto lugar, construiu para si a aura dos guerreiros. Em sentido inverso à estratégia da Brahma, a consagração da esquadra uruguaia em seu país transformou-se em discurso nacionalista, e a cena da “defesa” de Suárez se tornou consumo: chamada de “La mano de Dios… y de la Virgen María” (uma brincadeira dos uruguaios com “La mano de Dios”, como foi batizado o lance em que Diego Maradona, ídolo argentino, fez gol de mão contra a seleção da Inglaterra na Copa do México de 1986, vencida pela Argentina), foi transformada em bem de consumo ao ser reproduzida em cartazes comercializados no Uruguai, um souvenir do evento ocasionalmente grandioso. O consumo, entre as estratégias da linguagem e das práticas, possui uma dinâmica que está além dos sentidos totalizantes: se para a Brahma o tom eufórico fica adiado para a próxima Copa, na orquestração midiática em compasso com as expectativas dos torcedores, para o Uruguai, o inesperado se faz orgulho nacional e se transforma em consumo.

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