Consumo, consumismo, consumição

Imagine se sempre que o termo álcool – ou qualquer expressão ou imagem correlata – aparecesse em uma narrativa midiática estivesse associado a uma promessa de felicidade. Bem, por vezes isso acontece e podemos verificar o tipo de narrativa enviesada que tende a ser construída. E se a ligação não fosse com felicidade, mas com alcoolismo? O que quero destacar aqui é como algumas associações, de certa forma arbitrárias, parecem ser repetidas à exaustão nas narrativas midiáticas e como isso poderia trazer consequências à construção do imaginário social. Na vida prática, bebidas alcoólicas não estão necessariamente (muito menos naturalmente) associadas nem à felicidade, nem ao alcoolismo. Para um viticultor, por exemplo, vinhos podem envolver significados vastos, além de dois pólos extremos como felicidade e vício.
Peço que o leitor pare um instante e procure lembrar como o  consumo (e expressões e imagens relacionados) geralmente é representado na mídia. Tradicionalmente, aparece como algo altamente desejável e prazeiroso, certo? Na ponta oposta, chama a atenção a proliferação de reality shows que, embora se proponham a problematizar questões relacionadas ao consumo na contemporaneidade, acabam por apresentar o consumo com sinônimo de consumismo. 
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Via de regra, tais programas mostram guarda-roupas ou cômodos de casas abarrotados de coisas, apontadas como tralha. Nos relatos, os consumidores são representados como irracionais, testemunhando impulsividade e afirmando não saber como acumularam tanta coisa inútil. Eventualmente, esses programas mostram pessoas indo às compras, geralmente com dificuldades de manter o equilíbrio diante de ofertas, assim como a saúde financeira. 
Os shows se propõem a representar um “momento da verdade” aos que se propõem a participar, supostamente deflagrando o quanto a associação entre consumo e prazer seria um engodo. Como alternativa, privilegiam o extremo oposto, associando consumo a algo potencialmente nefasto.
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Nessas narrativas, os consumidores são apontados como responsáveis pelo seu próprio descontrole, assim como pelos impactos indesejáveis do consumo no mundo, cabendo a eles a tarefa urgente de “consumir melhor” para salvar a si mesmos e ao planeta.  Estruturas e sistemas que sustentam a sociedade de consumo dificilmente são abordados, de modo que o capitalismo ou o neoliberalismo não costumam figurar como pauta, no máximo sendo lembradas aos espectadores algumas táticas promocionais e supostas alternativas de “consumo sustentável”.
Os participantes são frequentemente estimulados a demonstrar arrependimento, o que os levaria ao passo seguinte: aceitar que precisam adotar as práticas de detox sugeridas pelos shows. Na cena final, o que geralmente se vê são guarda-roupas inteiros descartados e recomprados e casas totalmente reformuladas. Sugere-se que, para manter a vida “em ordem”, se poderia reduzir a quantidade de coisas (alguns programas chegam a sugerir alguns números mágicos, que representariam o ideal de coisas que uma pessoa equilibrada deveria ter), mas absolutamente todos os itens que uma pessoa tenha precisariam ser muito úteis, flexíveis, amados e atuais. Fica a dúvida sobre quantos itens conseguiriam estar no topo de tal lista de exigências por muito tempo.
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Apesar de eventualmente esses shows sugerirem que lista de must-haves poderia ser aliviada, duas questões merecem exame: 1) a convocação para renovar com freqüência; 2) a pressão para que os os consumidores dediquem-se mais e mais permanente a avaliar e dispor de uma forma considerada desejável aquilo que possuem.
Antes de aliviar a pressão sobre o consumo, a proliferação de tais narrativas coloca o tema no holofote, posicionando o consumo como algo realmente central e importante na cultura contemporânea. Convoca-se para “consumir melhor”, exigindo mais investimento emocional dos consumidores, sob a pena se serem considerados inadequados . Assim, cada item consumido é colocado como um verdadeiro statement de quem se é, de quem se foi, de quem se queira ser, do que se sente, dos seus valores, da sua posição social, do mundo que se deva desejar e demonstrar apoio etc. Obviamente, tais shows não cessam de oferecer, cada qual ao seu modo, exemplos do que seriam um closet e uma casa “pensados”, atuais, desejáveis – incluindo uma extensa lista de vantagens para os consumidores dispostos a adotar os padrões indicados.
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Não nego que uma casa arrumada ou um guarda-roupas sob medida não possam ser, sim, indicativos de bom-senso e fontes de prazer, mas provoco o leitor a lançar um olhar crítico sobre esses dois fenômenos midiáticos: o do desapego e o da organização.  Ao que tudo indica, o lar não é mais como antigamente. Em vez disso, haja ânimo (e esforço, e consumo…) para ter e manter uma vida digna de show room, em permanente curadoria, renovação e exibição…
Ufa…vai um cervejinha aí?
 

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