O Show de Truman: uma alegoria da indústria cultural
Por Pedro Tancini e Maria Beatriz Portelinha
O Show de Truman (1998) nos remete a um futuro distópico em que um programa de televisão abre mão da liberdade e privacidade de um indivíduo para o entretenimento de seu público. O filme retrata um reality show no qual o protagonista desconhece que está sendo vigiado por câmeras e vivendo em uma cidade cenográfica. Em meio a um universo falso, exibe-se um personagem espontâneo, transferindo ao show um caráter original, imprevisível e não-ficcional.
Truman Burbank, o escolhido para estrelar o reality show, vive dentro de uma redoma construída no meio de Hollywood. Essa redoma imita uma ilha, na qual está Seaheaven, uma cidade falsa que simula todas as complexidades de uma cidade verdadeira. Há prédios, uma praia, um pier, pontes, carros e uma população e comércio ativos. Ademais, a cidade de Seaheaven é repleta de câmeras estritamente posicionadas para televisionar o cotidiano de Truman.
Logo no início do filme, os principais agentes do show fazem um manifesto a favor da estrutura do programa. Christoff defende que as pessoas estavam entediadas por assistir programas que trazem emoções falsas, efeitos especiais e pirotecnias. O show de Truman surge como uma proposta de autenticidade televisiva: não há roteiros, tudo é genuíno, tudo é real. Meryl, a atriz que interpreta a esposa de Truman, defende que ser parte do show é poder viver uma vida de sonho. Marlon, o ator que interpreta o melhor amigo de Truman diz que nada é falso, mas meramente controlado.
Por meio desse controle, os produtores tentam manipular não somente as condições de vida de Truman, mas também sua subjetividade. Durante a trama, é possível ver mensagens e cartazes posicionados subliminarmente, tentando influenciar as decisões do personagem. A produção do show tenta, de diversas maneira distintas, controlar o universo de Truman e suas relações interpessoais, interferindo no que ele aprende, arquitetando traumas, forjando relações pessoais, manipulando memórias e dando conselhos por meio dos atores que o protagonista considera como família e amigos.
Nota-se, contudo, que todas essas forças de controle da subjetividade e do cotidiano de Truman estão a favor de um mercado publicitário que se aproveita da grande adesão do reality show. A publicidade aparece em vários momentos durante o filme. O protagonista é forçado a participar de várias cenas e diálogos curiosos, que a princípio, não fazem sentido para ele. Em sua rotina de ir ao trabalho, por exemplo, Truman encontra diariamente dois gêmeos que arrastam o personagem em um diálogo forçado, favorecendo um display de mídia ao ar livre. O mesmo acontece dentro de sua casa: sua esposa lhe recomenda mercadorias a todo momento. Afinal, tudo dentro do universo de Seahaven é mercadoria: desde as roupas que Truman utiliza, os produtos que consome e os gostos que nutre. O reality é encarado como uma vitrine onde tudo está pronto para ser vendido a uma legião de espectadores.
Por isso, não se pode pensar em tais aspectos ideológicos do show sem recorrer ao conceito de indústria cultural, desenvolvido por Theodor Adorno e Max Horkheimer (1998). Os autores propõem que a consolidação dos meios de comunicação de massa inaugurou um cenário no qual a cultura passou a ser apropriada por um sistema de massificação e padronização semelhante às lógicas de produção industrial. Em outros termos, a indústria cultural passou a promover a alienação da audiência durante o seu tempo de lazer, reafirmando as estruturas de poder e escondendo sua condição exploratória.
Porém, é importante ressaltar que, apesar desse controle multidirecional, os idealizadores do show constantemente reiteram que há um genuíno senso de vida no programa, que permite dizer que ele não é falso, mas real. Este aspecto é gerado pela própria ignorância de Truman sobre sua condição. A escolha de manter alguém como Truman, que desconhece a narrativa de que participa e por isso a constrói com genuína espontaneidade, revela que apesar da necessidade de controle, o sucesso do programa está pautado exatamente em um elemento original, imprevisível e não-ficcional.
Durante o filme, o esforço do idealizador não é exatamente de impor um caminho fixo e determinado para o show. Em outros termos, Christoff não utiliza as ferramentas de controle apenas como forma de censurar possíveis acontecimentos indesejados (como a exibição da atividade sexual entre Truman e sua esposa), mas principalmente como forma de orientação das escolhas de Truman, que apesar de todo o controle, não são forçadas ou predefinidas. Esse movimento garante um essencial efeito de verossimilhança, já que preserva um mínimo de liberdade de ações para Truman.
Exemplos desse processo se dão quando Truman engana as câmeras do programa e tenta fugir da ilha. Esse momento, de acordo com a fala de Christoff, é o momento em que mais televisões estão sintonizados no programa, evidenciando que o público é altamente mobilizado pelo risco das ações de Truman, pelo sua dimensão verossímil. Ainda, quando Truman finalmente tenta escapar ao controle do programa e toma coragem de partir da ilha onde vive, a audiência passa a torcer por ele. Entendemos que essa aparente espontaneidade e risco que o estado lúdico do show proporcionaram cativam e criar laços de identificação com a plateia.
Entretanto, da mesma forma que o caso do pai de Truman, no fim do filme, essa narrativa de liberdade de Truman também é adequada às lógicas de padronização da Indústria Cultural. De uma forma inteligente, o filme põe em cheque o papel do próprio espectador que o assiste, questionando se a nossa identificação com Truman não é análoga aquela que o show recorre com a audiência ficcional. A história de Truman acaba se enquadrando em um modelo narrativo muito recorrente, o que engrandece de forma metalinguística a crítica do filme.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Juan José Sánchez. Madrid: Trotta, 1998.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: o espírito do tempo. V. 1: neurose. 9a edição. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha. São Paulo: Forense Universitária, 2005.