A anunciação midiática

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A publicidade está colada ao sistema social em que vivemos como a pele ao corpo. Desde que surgiu, na forma de anúncios classificados, vem, feito um rizoma voraz, cobrindo todos os espaços explorados pelos meios de comunicação, sejam públicos ou privados, reais ou imaginários. Mas se o anúncio de um produto – a sua realidade simbólica – é capaz de nos encantar, o seu consumo material pode, igualmente, nos desencantar. E vice-versa. É isso que leva o mercado dos signos a operar o tempo todo criando novas anunciações para provocar o reencantamento do mundo.

No entanto, um simples anúncio de classificado pode também revelar, em suas poucas linhas, detalhes das condições de vida da sociedade de onde ele emergiu. São Paulo de 1868. Retrato de uma cidade através de anúncio de jornais, por exemplo, ensaio do escritor e publicitário Orígenes Lessa, nos mostra os veículos, os móveis, as atrações da capital paulista e, sobretudo, o modus vivendi, daquela época.

Gilberto Freyre, ao criar o que ele mesmo denominou “anunciologia”, estudou os classificados sob a ótica da história social, utilizando-os como material de pesquisa para fazer uma interpretação antropológica da nossa sociedade, então escravocrata, em sua obra O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX.

Já ciente da retórica laudatória dos donos de escravos, quando, ao colocá-los à venda, exageravam nas suas qualidades, Freyre deteve-se precisamente em anúncios de negros e mestiços fugidos, que exigiam descrições mais próximas à verdade e, assim, melhor lhe serviram para reconstituir traços de corpo e personalidade dos africanos que aqui foram trazidos.

Se por um lado, alguns classificados parecem ter saído da mão de romancistas ou poetas, pela escrita esmerada e observação arguta (como, por exemplo, o da mulatinha sarará, Joana, de 14 anos, pernas e mãos finas, uma verdadeira “flor de pecado”), por outro, nesse tipo de anúncio não aparecem apenas figuras eugênicas (negros e negras belos, altos e fortes), mas também dramas em três linhas, como já observara Santo Tirso.

É justamente o que vemos nos classificados analisados por Freyre. Por meio deles, descobrimos os sinais de deformação no corpo de escravos (homens, mulheres e crianças) por doença, ou por excesso de trabalho, como cicatrizes de açoite e de ferro quente. Alguns negros fugiam com mordaças fechadas a cadeado (medida profilática contra o vício de comer terra), outros eram descritos como gagos, corcundas, aleijados, cambaios, com calombos, ou sem dentes, zarolhos, e, não raro, apontava-se, também, as suas deformações de espírito (malucos, lesos, sorumbáticos, tristonhos).

Se em muitos desses anúncios é possível entrever relações de respeito e afeto entre os escravos fugidos e seus senhores, como notou Freyre, numerosos são os que deixam explícitos os maus tratos, os castigos, as violências cometidas contra os negros no ambiente de escravidão doméstica, familiar e patriarcal que predominou em grande parte do Brasil no século XIX. É um variado catálogo de sofrimentos humanos que encontramos ao consumir esta obra.

E que nos leva a pensar nos milhões de anúncios classificados que foram e continuam sendo derramados nos jornais do país nesta primeira década do século XXI. Como uma serpente que troca a pele e necessita fazer a sua anunciação, lá está a nossa história social, na oferta de apartamentos, automóveis, computadores, celulares, serviços profissionais (de prostitutas a white collars) e tantos outros objetos, produtos e próteses que deixam rastros da nossa maneira de viver e morrer. Com ou sem encanto.

Realmente, o consumo (até mesmo de anúncios classificados) nos faz pensar. Às vezes, nos doer, como uma chicotada.

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