Consumo, desejo e fetichismo

consumo-desejo-fetichismoAs peças publicitárias representam, com uma ligeira tendência hiperbólica, as atrações magnéticas que às vezes sentimos frente a objetos de consumo. Elas nos mostram o poder de captura de uma joia, que de tão forte, tão imediato, faz cada olho da mulher seduzida reagir de maneira independente, como se não estivesse sob o controle de um “eu” unificado.

Desnecessário explicar mais a fundo a natureza de tal atração visceral, pois creio serem poucos os leitores que nunca tiveram o olhar capturado por um objeto qualquer em uma vitrine (ou em outro lugar qualquer), que não foram então arrastados até ele por uma estranha força, e que diante dele não se detiveram, deleitando-se com suas formas.

Em alguns espíritos mais contemplativos, essa experiência sensorial, e – por que não? – sensível, pode bastar-se a si mesma. Na maioria, entretanto, ela se mistura a um desejo menos ou mais ardente pelo objeto. Desejo este que pode ser posteriormente racionalizado com base em quaisquer justificativas, que vão de preços oportunos a utilidades fantásticas, mas que já antes se instalara no íntimo dos que se explicam para si mesmos ou para os outros.

Como emergiu, então, esse desejo? Como, em um piscar de olhos, um objeto até então inteiramente desconhecido para um sujeito torna-se, momentaneamente, foco central de todas as suas forças desejantes? Impossível espremer a resposta em uma capsula para consumo. Ainda assim, um termo muito usado poderá nos ajudar a entender melhor a questão. Todos já ouviram a palavra, mas poucos saberiam definir seu significado: fetichismo. Sabemos que ele costuma trazer à mente ideias relacionadas a roupas de couro e vontades sexuais pouco convencionais. Estranho? Freud explica: para o pai da psicanálise, fetiche é uma espécie de substituto do objeto sexual “normal” (seja lá o que Freud considere normal). Fetichismo seria o desvio do impulso sexual que, ao invés de se voltar para a consumação do ato sexual propriamente dito, apega-se a outro objeto qualquer. Por exemplo, ao invés de desejar “interagir” com sua parceira como um todo (e mais especificamente com sua genitália), o fetichista desenvolve uma obsessão por algum objeto a ela relacionado: seu pé, seus sapatos, suas meias, uma fotografia sua…

Tudo bem, mas o que isso tudo tem a ver com a pessoa que foi atraída e teve o desejo despertado por um objeto de consumo, uma bolsa, digamos, na vitrine de uma loja? Bem, não será difícil ver as semelhanças entre tal situação e a atração magnética repleta de desejo que podemos sentir por membros do sexo oposto (ou do mesmo sexo, a depender das preferências) a partir de uma mera olhadela. Não poderíamos dizer, então, que a primeira forma de atração está relacionada à segunda mais ou menos do mesmo modo que fetiche ao objeto sexual? Talvez, mas a distância entre uma bolsa na vitrine e uma mulher (ou homem) desejada(o) é tão grande que tal conexão pode parecer ligeiramente delirante, se não pervertida (pelo visto, o vocabulário psicanalítico nos persegue).

Mas… e se encontrássemos um meio termo? Um objeto que é meio coisa e meio pessoa? Nada mais fácil: seria essa a definição de uma imagem – de uma escultura de mulher, por exemplo: meio pedra, meio mulher. E se as pessoas se apaixonassem por uma imagem ou, de resto, quisessem beijá-las, não ficaria então claro que nossas relações com objetos possuem uma forte dimensão afetiva e muito mais em comum com nossas relações humanas do que normalmente gostamos de admitir? (Esclarecendo que a relutância em admitir o fato parece ser efeito de uma estranha obsessão racionalista, ela própria irracional, que permeia nossa cultura).

Sim, dirão vocês, mas não vemos muitas pessoas beijando imagens no meio da rua e nem se apaixonando por elas. Sem dúvida, direi eu, afinal de contas, a ideia aqui exposta é justamente que tais tendências, hoje, dirigem-se a alguns objetos de consumo na forma de atrações magnéticas e desejos intensos. Mas, e antigamente? Se não quisermos recorrer à famosa lenda grega do escultor Pigmaleão que se apaixona por sua escultura Galatéia, podemos passar direto para a idade média, época em que beijar ícones [1] era uma prática tão corriqueira que algumas imagens chegaram a ficar inteiramente desfiguradas pelo contato constante das bocas. Prática religiosa, sim, mas claramente fetichista.

Aproveitando a viagem no tempo, podemos voltar às tribos “selvagens” e seus objetos mágicos que estimularam a criação do próprio termo “fetiche”. O fetiche original era mágico, e igualmente atraente (não foi à toa que ganhou um nome próprio). O ícone religioso também tinha tanto um caráter mágico quanto um afetivo. Regressamos, enfim, à questão levantada: podemos, afinal, dizer o mesmo de alguns objetos de consumo com especial potência sedutora?

Embora breves, as considerações acima já me parecem suficientes para dizer – parafraseando palavras de Freud – que sim: eles são, com justiça, assemelhados por diversos autores, notadamente Everardo Rocha e W. J. T. Mitchell, aos fetiches em que os selvagens acreditam estarem incorporados os seus deuses. Como todos os fetiches, eles despertam uma atração magnética, quase mágica, parecem querer ser beijados, incorporados, enfim, consumidos.

Acrescentarei somente, para terminar, que conheço muitas pessoas (e não estou, eu, excluído do grupo, até por que não se trata aqui de falar mal do fetichismo e menos ainda dos fetichistas) que poderiam descrever suas relações com certos objetos de consumo copiando letra por letra a declaração do protagonista fetichista do conto O abacaxi de ferro, de Éden Phillpots: “[a coisa] exercia sobre mim um […] fascínio, e não saberia dizer quantas vezes a visitei, a toquei e a ela ofereci meus devaneios. Aquela figura […] tornou-se para mim um fetiche e exercia sobre mim um poder hipnótico[…]”.

Notas:
[1] Ícones são imagens de culto cristãs. Normalmente, representam Cristo, a Virgem, ou santos.

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