‘Cinema, Aspirinas e Urubus’: um retrato diferente do sertão

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Por Renato Pezzotti e Gabriela Castro

Seguidos símbolos de modernidade são o fio condutor de ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’, filme brasileiro de 2005, e analisado neste ensaio. O longa-metragem, estreia do diretor Marcelo Gomes, despertou a simpatia da crítica (e do público) nacional e foi selecionado pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil no Oscar de 2007. Além disso, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais em diversos festivais por todo o mundo – e está na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Eduardo Valente, que este ano esteve à frente da assessoria internacional da Agência Nacional do Cinema (Ancine), afirma que “a melhor maneira de descrever seu impacto é afirmar que está fadado a ser um filme-paradigma no cinema brasileiro recente”.
A história, que se passa em 1942, conta a saga de Johann (Peter Ketnath), um alemão que foge da II Guerra Mundial rumo ao Brasil – e acaba se tornando vendedor de uma ‘pílula mágica’ (a aspirina, medicamento que havia chegado ao Brasil há pouco tempo) no sertão nordestino, a bordo de um caminhão da marca.
Entre uma estrada e outra, Johann conhece Ranulpho (João Miguel), sertanejo em busca de uma carona que o leve até o Rio de Janeiro – a ‘cidade grande’. Entre uma cidade e outra, eles se tornam amigos e confidentes. A verdade do cineasta passa pelo naturalismo, mas desemboca na crença do próprio narrador.
É a partir do encontro entre os universos de Johann e de Ranulpho, com duas realidades tão diferentes e impulsionadas por utopias parecidas – um que quer ir embora e outro que quer continuar sua jornada – que os elementos traçados pelo longa se ressignificam.
O filme nos remete, sim, na verdade do trajeto daqueles dois homens – desde a entrada das histórias nos passadas pelo rádio do carro, pela participação de mais ‘caroneiros’ ao longo da jornada e pela exibição de filmes promocionais em verdadeiros ‘cinemas a céu aberto’ para aqueles que sequer haviam visto uma televisão em toda a sua vida.
Ainda segundo Valente, o longa tem a “qualidade rara do domínio técnico da linguagem que não chama a atenção para si – e assim é sua fotografia, sua montagem, sua direção de arte e figurinos”. É um relato sobre o poder: o poder de quem tem uma arma de fogo, de quem tem um caminhão, de quem é o ‘coronel’ na cidade pequena, de quem chama atenção e, até, de quem tem água. Um retrato do sertão sem ser um filme regional.
Road movie: distinção e modernidade
Em ‘Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular’, dentro do livro ‘O Cinema e a invenção da vida moderna’, Ben Singer destaca as ideias relacionadas ao tema ‘modernidade’ – e, aqui, identificamos algumas delas. Para o autor, “a modernidade sugere o ‘desamparamento ideológico’ de um mundo pós-sagrado e pós-feudal no qual todas as normas e valores estão sujeitos ao questionamento”.
Dentro de um conceito socioeconômico, tal modernidade é responsável por uma grande quantidade de mudanças tecnológicas e sociais – que, segundo Singer, alcançaram um volume maior perto do fim do século XIX: industrialização, urbanização, proliferação de novas tecnologias e meios de transporte e explosão de uma cultura de consumo de massa, entre outros.
Apesar das datas não serem tão próximas (o final do século XIX e os anos 1940, retratado no filme), são exatamente tais mudanças tecnológicas e sociais que norteiam toda a construção de ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’. A modernidade justifica o filme.
Em somente um dos diálogos entre Johann e Ranulpho, no caminho para Triunfo (a maior cidade da região), podemos identificar vários destes aspectos:
Ranulpho: “De onde veio o moço com esse caminhão?”
Johann: “Do Rio de Janeiro”
Ranulpho: “Eu vou pra onde o moço veio. Cansei desse buraco. Moço parece cansado”
Johann: “São três meses de viagem. Esse Brasil parece que não acaba nunca”
Ranulpho: “Lugar que não presta é assim”
Johann: “Fuma?”
Ranulpho: “Importado?”
Johann: “Esse não”
Ranulpho: “Nacional? Fumo não”
Durante a primeira meia hora do longa, ainda encontramos outros aspectos tão importantes quanto estes: o estrangeiro que muda para o Brasil, o carro que desvenda o sertão do Nordeste, o rádio que traz as notícias das cidades grandes, o medicamento ‘milagreiro’, o cinema (que vende o produto em povoados ermos) e o trem, que leva a esperança de uma nova vida para a Amazônia.
Parte importantíssima de todo o roteiro é a invenção do cinema. Aos olhos incrédulos dos sertanejos, a dupla monta uma pequena tela, com um comercial sobre o produto, e num passe de mágica convence a população a comprar o remédio.
Ranulpho ainda questiona: “Povo é cismado, mesquinho, do tempo do ronco. Como que o moço vai convencer esse povo atrasado a comprar um remédio novo?”. Johann apenas sorri – já sabendo que o povo estaria convicto a comprar qualquer produto que ele vendesse.
“O cinema, assim, surge como parte de uma cultura emergente do consumo e do espetáculo”, como afirma Miriam Bratu Hensen, em ‘Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade, dentro do livro ‘O Cinema e a invenção da vida moderna’.
Pílula milagrosa
A questão da saúde e a tecnologia farmacêutica está ligada com o que conhecemos como evolução e as formas de tratar as doenças para o povo – pobre e pouco letrado – brasileiro. Imaginemos o Brasil do sertão dos 1942, onde a pobreza e as enfermidades provavelmente estavam na luz do dia, assim como a convivência com animais perigosos e as consequências de morar com eles. De fato, Johann, o protagonista da história sofre uma picada de cobra em uma paisagem sertaneja em uma das cenas do filme.
Nesta ideia, Johann e sua incursão com a aspirina, apresenta essa modernidade que chega da Europa para tratar as doenças comuns de aqueles dias. Outra coisa que traz a promoção da aspirina é o conteúdo do cinema apresentado ao povo, que descreve como a grande São Paulo é um exemplo da modernidade no pais e está posicionada, desde essa época, como a imagem de modernidade e de aquilo que é belo, perfeito é próspero. Todo isso, resumido num produto específico, na aspirina.
Embora o filme não glorifique a figura de Johann, ele é o encarregado de introduzir aquela mostra de saúde e esperança para aqueles que adoecem. Johann, além de ser o gringo que conhece o Brasil inteiro, é tratado como igual e parte da cotidianidade das pessoas que aparecem no seu entorno. A aspirina faz o resto. Consumir aspirina é sinónimo de prosperidade.
Independente do paradigma de produção, exibição e recepção, o cinema dentro do longa se mostra fundamental: à céu aberto, para um público restrito, que sequer tem ideia do que está acontecendo ali. Naquele momento, o povo “cismado, mesquinho, do tempo do ronco”, qualificado assim por Ranulpho, é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural de Adorno e Horkheimer.
Como afirma o slogan final do próprio filme publicitário exibido por Johann, “na hora da dor, não perca a cabeça. Tome aspirina e mostre que tem cabeça”. Ou seja: mostre que é inteligente. Tenha dor de cabeça até para justificar o remédio.
Carona de vida
Da mesma forma que Ranulpho e Johann se conhecem a partir de uma carona, o caminhão da empresa do alemão – que carrega sua vida dentro (os produtos, o projetor para o cinema, a água e a gasolina) se torna um ponto de contato entre os outros personagens do longa. São personagens que estão apenas de passagem – e mostram a vida simples e volátil do sertanejo.
Em dois momentos identificamos tais passagens. Em uma cena, Johann para seu caminhão na estrada e pergunta a direção da cidade de Triunfo. O sertanejo apenas responde: “Sei não. O alemão oferece uma carona: “Vai pra lá ou pra cá?”. O interlocutor, aparentemente no meio do nada, responde: “Eu vou ficar por aqui mesmo”.
Depois, uma senhora, carregando uma galinha pede uma condução aos dois. No caminho, aparentemente contrariado, Ranulpho pergunta o que será se aquela galinha sujar “tudo ali”. E Johann dá de ombros. Mostra que sua cultura é diferente. Que o sertão de Cinema, Aspirinas e Urubus é apenas uma passagem.
Compro e vendo
Quando a viagem chega finalmente à cidade de Triunfo, Johann monta novamente sua ‘casa de espetáculos’ e coloca a ‘roda para girar’: após a exibição do filme, novamente os habitantes da cidade correm para comprar o produto. Logo depois, ele conhece Claudionor Assis, ‘o empresário’, que quer comprar todo o estoque de Johann – desde que faça seu preço na hora da revenda.
O que importa ali é a troca de poder: o “sucesso da empreitada” em troca do “progresso de Triunfo”. No bordel da cidade, em comemoração à negociação, Johann é apresentado por Assis como um “alemão autêntico responsável por trazer o futuro para Triunfo”, citando o dia como o “começo de uma nova era” para a cidade, que será “a capital de todo o sertão”.
Aqui, podemos remeter Georg Simmel, com “O dinheiro na cultura moderna”. Fica evidente a relevância do dinheiro, que confere a autonomia e a independência da pessoa, uma ligação forte entre os membros da sociedade. Se torna o mecanismo facilitador de mediação entre Claudionor Assis e Johann.
Hedonismo presente
Como a Madame Bovary nordestina, aparece no filme a mulher de Claudionor Assis, como um “modelo” de nova mulher e a cosmovisão brasileira respeitosa pela educação e influência europeia na vida cotidiana.
Próspera, estudou na França, fala francês perfeitamente (de acordo com a introdução do seu marido) e é o exemplo do hedonismo e “sucesso” ao casar-se com um “empresário”, como se sua educação foi pensada nesse jeito.
A figura da Maria da Paz, é sem dúvida, a cosmovisão sobre o que se pensava – ou se pensa – sobre a Europa: ela é uma mulher bem-sucedida e livre de fazer ou pensar sobre qualquer tema.
Do outro lado, estão as figuras das prostitutas, indelicadas e livres dentre da prostituição e a pobreza, distantes do personagem da Maria da Paz, mas felizes do seu trabalho, do seu corpo e das suas vidas, marcadas pelo sexo e pelo álcool.
Povo de fé
Os protagonistas iniciam sua superação logo após a noite de orgia em Triunfo. Com o Brasil declarando guerra contra a Alemanha, Johann precisaria voltar a São Paulo para servir num campo de concentração ou deveria voltar a Alemanha para a guerra.
Aqui surge uma nova oportunidade: ir para a Amazônia, trabalhar nos seringais de borracha, em uma nova oportunidade. Ele acaba decidindo pela viagem, enquanto Ranulpho fica com o carro, um ‘presente’ pela amizade.
Uma frase de Ranulpho, ainda antes do fim da jornada, ainda mostrava que a aventura dos dois não era tão ruim assim: “a gente se divertindo que só e o mundo todo se acabando”.
Cenas de pobreza extrema, fome, migrações massivas, meninos com cara de desnutrição e estruturas habitacionais são parte do panorama desalentador e triste presente em toda a trama, sobretudo na cena final, quando centenas de moradores do sertão vão migrar para a Amazônia de trem para procurar outras vias de trabalho e melhorar sua vida.
Nesse sentido, aparece a dúvida existencial do filme. Onde está Deus? Por que a figura da prosperidade, como Claudionor Assis e sua mulher (que se gaba de ter estudado em Paris), tem um teto digno, educação e dinheiro? É aí onde aparece a dúvida existencial, paradoxal sobre a história do nordeste brasileiro.
A aspirina encontra nos povinhos onde é oferecida, cenários onde a esperança é o pão deles de cada apesar da desolação. Esse é outro tema que o filme convida. Realmente tem mudado alguma coisa no nordeste na atualidade? Esse é uns dos principais temas implícitos que temos que olhar para entender a história e a evolução mesma do Brasil e questão de pobreza e igualdade.
A verdade é que Cinema, Aspirinas e Urubus mostra um conhecido sertão nordestino, mas diferente ao mesmo tempo – provocada pela combinação de discursos como a guerra, o rádio, a invenção do cinema e a venda de um produto absolutamente desconhecido na região, unindo, de forma metafórica, o prazer de assistir a um filme numa tela à alegria de se curar uma dor de cabeça.

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