De Mortícia a Bündchen: gosto não se discute

gisele

Uma grande amiga minha, professora de jovens de 3.as séries do Ensino Médio, me contou uma história que, na hora, achei engraçadíssima, mas que me fez reconsiderar alguns conceitos.

O dia era um qualquer. A aula era como tantas outras. Os alunos estavam fazendo um exercício, como tantas e tantas vezes acontece. Uma aluna veio à mesa da professora para tirar duas dúvidas. A primeira, banal: como se escrevia “gosto”: com o Acordo Ortográfico, a palavra passara a ter algum acento? Claro que não! Quando elas – professora e aluna – nasceram, “gosto” já se escrevia assim, sem acento, sem nada. Não havia o que discutir. Gosto era indiscutível. Imutável. Mas…

Havia a segunda pergunta. O diálogo vale ser reproduzido: A aluna: – Também me pediram pra fazer uma outra pergunta, professora… A professora (já com frio na barriga, antevendo a bomba que viria, em forma de pergunta; afinal, o autor não quisera se identificar, preferindo o anonimato de uma pergunta feita por uma colega…):  – Diga.

A aluna: – Eu vou perguntar, e não é piada. Eu juro que é sério.

A professora (ainda com o frio na barriga; já sem disfarçar o medo daquilo que estava por vir): – Pode dizer.

A aluna: – Me pediram pra perguntar se alguém já te disse que você parece a Mortícia…

A professora: – … … … Da Família Adams?

A aluna: – É…

A professora: – A Mortícia da Família Adams???!

A aluna: – É, psora, mas fala baixo… eu juro que é sério… e é elogio…

A professora (desconsiderando o pedido da aluna. Deixando de falar apenas com a aflita discente): – Pelo amor de Deus!, eu vou ter de interromper a concentração de vocês. Quem, em sã consciência, pode achar que chamar uma dama de “Mortícia da Família Adams” é um elogio, Santo Cristo???

Nesse momento, a professora pôde acompanhar – quase em câmera lenta – um aluno muito quieto, que nunca havia pronunciado nenhuma palavra em aula, ir aos poucos – quase em câmera lenta – levantando a mão. Muito timidamente, o aluno falou: – Eu, professora… … … Mas eu acho a Mortícia bonita…

A professora riu aquele riso sem-graça de quem sabe que cometeu uma gafe, riu junto com os outros alunos, que perceberam tudo o que havia acontecido até ali: o aluno que levantara a mão era um Emo, uma das tantas tribos que se veem entre aqueles jovens. Para aquele jovem específico, para aquele jovem Emo – introspectivo, como convém a esses “Emotion guys”; com sua estética tão particular –, a Mortícia – com suas roupas pretas, com seu cabelo escuro escorrido por sobre o rosto, sua pele extremamente branca – era linda. A aluna não mentira: ser chamada de Mortícia era, mesmo, um elogio.

Como já disse, essa história me fez rir. E me fez pensar.

Lembrei-me de um texto de Eric Landowski cujo título em si já é representativo: “Gosto se discute”. Nesse artigo, o autor reflete sobre o quanto nossos gostos são emprenhados do outro; o quanto nossas eleições por aquilo de que “gostamos” não são tão individuais como podem parecer em um primeiro momento:

“Ora, enquanto é provável que Beltrano preferisse agradar a Sicrano, quer dizer, despertar seu gosto, antes do que seu ‘desgos¬to’, os elementos com que ele, Beltrano, povoou seu arredar, os que escolheu porque gostou deles (as pessoas que frequenta, os livros que lê, as roupas que veste, e assim por diante), fazem parte do conjunto constitutivo da figura que ele apresenta agora ao outro que o observa. De tal modo que a resposta à questão de saber se Sicrano, afinal, “gostará” mesmo de Beltrano, ou não – ou, no sentido inverso, se Beltrano obterá, ou não, a satisfação (subjetal) de agradar a Sicrano – vai depender, em parte, dos gostos (obje¬tais) de Beltrano, isto é, do regime específico de atrações e de repulsões que, ao animá-la na presença dos seres e das coisas, con¬figura sua identidade.” (LANDOWSKI, 1997, p.117)

E como nossa cabeça faz associações livres, e por vezes nem tão livres, o texto de Landowski me fez lembrar de outro texto, esse de autoria de Maria Aparecida Baccega. Do gosto-pessoal-que-não-é-tão-pessoal, para o receptor-que-não-é-tão-mero-receptor. Da Semiótica para a Análise do Discurso.

“o indivíduo/sujeito que ‘recebe’ os discursos. Na verdade, ao ‘receber’ tais discursos, ele vai ‘lê-los’, entendê-los, apropriar-se deles a partir de sua própria realidade, a partir de sua classe social e/ou grupo. Em todo enunciatário há também um enunciador, pois o ‘entendimento’ do discurso do outro, a apropriação do discurso só se efetiva quando o enunciatário materializa essa apro¬priação, através da manifestação; quando ele enuncia o novo discurso para si (monólogo interior) ou para outro.” (BACCEGA, 2007, p.92 – Grifo no original)

Não é incomum ouvir-se que a mídia em geral e a publicidade em particular impõem padrões, modos de ser, modos de sentir. Que a mídia em geral e a publicidade em particular têm um público-alvo a ser atingido, modificado, adaptado. Que esse público, tal qual carneirinho, segue o que se impõe, quase ditatorialmente, pelos meios de comunicação.

Pois esse aluno, com seu longo casaco preto, com seus coturnos nos pés, com sua franja a lhe cobrir um dos olhos, desmentiu o senso comum e confirmou que “Na verdade, ao ‘receber’ tais discursos, ele vai ‘lê-los’, entendê-los, apropriar-se deles a partir de sua própria realidade, a partir de sua classe social e/ou grupo”. Esse aluno, assim como tantos outros jovens e não-jovens, não são tábula rasa. Afinal, certamente em algum momento de sua vida ele viu:

Gisele Bündchen em capa de revista: “a mulher mais sexy do mundo”

Deborah Secco, em cena de telenovela

Juliana Paes, em peça publicitária

Cleo Pires, em entrevista de lançamento de sua edição na Revista Playboy

Em revistas, peças publicitárias, novelas, programas de auditório, esse jovem de classe média-alta certamente teve contato diário com – ou, como prefeririam denominar alguns mais catastrofistas, foi “bombardeado” por – essas moças, com esse “padrão de beleza imposto pela mídia”.

Ainda assim, para ele, a beleza está em outro lugar. Está em filmes quase “noir”, com o perdão do trocadilho. Está em Anjélica Houston, talvez em Carolyn Jones, talvez até na Mortícia de desenhos animados:

Anjélica Houston, Mortícia dos filmes “A Família Adams” 1 e 2. Década de 1990

Carolyn Jones, no seriado de TV da década de 60

Mortícia em desenho animado

O que me ficou, tendo ouvido a história de minha linda colega – sim, linda… quem o negará, agora? – é que, ao contrário do que ela dissera à aluna quando esta lhe fez a primeira pergunta (“Como se escreve ‘gosto’?”), gosto se discute, sim. Gosto é mutável, sim. Mas não se impõe. Não é eterno. Não é unânime.

Referências bibliográficas

LANDOWSKI, Eric. “Gosto se discute”. In: LANDOWSKI,Eric e FIORIN,José Luiz. O gosto da gente, o gosto da coisas: abordagem semiótica. São Paulo: EDUC, 1997.

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura. São Paulo: Ática, 2007.

Gravuras (acessos em novembro de 2010):

Anjélica Houston como Mortícia: http://www.morticiasmorgue.com/af/21.html

Carolyn Jones: http://www.thegardenerseden.com/?cat=656

Mortícia em desenho animado: http://www.fanpop.com/spots/addams-family/forum/post/32957/title/battle-6-morticias

Gisele Bündchen:
http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL835001-9798,00-GISELE+BUNDCHEN+A+MULHER+MAIS+SEXY+DO+MUNDO+NA+CAPA+DA+VIP.html

Deborah Secco: http://www.maiscinema.org/filme_ficha.php?id=10219

Juliana Paes: http://semresenha.blogspot.com/

Cleo Pires: http://hipersessao.blogspot.com/2010/08/cleo-pires-capa-da-playboy.html

Emo em desenho desenho: http://pexenoiado.wordpress.com/2007/09/24/emo-day-2007-o/emos/

Emo em foto: http://tribosgregh.blogspot.com/2010/05/emo-emo-ou-emocore-e-um-genero-de.html

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