Memorial do Consumo: um acervo sui generis

Texto apresentado no GP Comunicação e Culturas Urbanas, XII Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Fortaleza – CE- 2012
Autoras: Rose de Melo ROCHA, Simone Luci PEREIRA, Ana Paula de CAMPOS

O Memorial do Consumo é um projeto do PPGCOM-ESPM que vem se desenvolvendo com o trabalho de consultoria de duas pesquisadoras sob a supervisão da coordenação do PPGCOM. Trata-se da concepção e montagem de um acervo digital sui generis que, em constante atualização, é composto por registros de memórias e narrativas sobre o universo do consumo, suas práticas, imaginários e materialidades. Para entender melhor seus contornos conceituais e propósitos é preciso compreender a esfera do consumo abordada pelo PPGCOM, que norteia a concepção e funcionamento do “memorial” e discutir conceitualmente memória, narrativa, memorial/museu e acervos virtuais. A partir destes parâmetros apresentamos, em linhas gerais, a configuração do Memorial do Consumo, seus objetivos, propósitos e sua estrutura de funcionamento.

baixar_gratis_livrosIntrodução
O PPGCOM – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação e Práticas de Consumo, vinculado à ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, tem como proposta pesquisar questões relacionadas à temática do consumo, naquilo que é o seu diferencial: a especificidade da interface comunicação-consumo que o coloca em condição de protagonista nos debates sobre a conjuntura, os limites e as transformações das sociedades contemporâneas. Apresentar visões oxigenadas e não dicotômicas do consumo – que o diferem do fenômeno do consumismo – e construir teoricamente os significados de sua crescente midiatização – que se fundou, na modernidade, em seu matrimônio com os meios de comunicação e as indústrias da cultura – têm sido o investimento desse programa que, dentre suas atividades, concebeu o projeto Memorial do Consumo.

Trata-se de um lugar de concentração das memórias e narrativas do consumo numa plataforma digital, fomentando o espírito investigativo tão caro ao campo acadêmico e ao debate intelectual. Foi elaborado a partir da proposta inicial do PPGCOM e de pesquisas realizadas pela consultoria das Prof. Dra. Simone Luci Pereira e Prof. Dra Ana Paula de Campos com a colaboração das bolsistas Carolina Junqueira (graduanda em Jornalismo pela ESPM) Beatriz Beraldo Batista (mestranda do PPGCOM-ESPM). O trabalho vem sendorealizado sob a supervisão geral da Prof. Dra. Rose Melo Rocha (Coordenadora do PPGCOM) e colaboração do Prof. Dr. Vander Casaqui, desde agosto de 2011.

Na seqüência apresentamos os parâmetros conceituais que orientam sua configuração, seguida da descrição da estrutura concebida, contemplando as diretrizes quanto ao seu formato, conteúdos, formas de organização e operacionalização.

O consumo para o PPGCOM-ESPM

Para os objetivos deste artigo enfatizamos algumas das abordagens privilegiadas no PPGCOM, particularmente aquelas através das quais se apresenta o consumo como fenômeno sociocultural amplo e complexo, central para o estudo da sociedade contemporânea e das práticas identitárias, políticas e interacionais dos sujeitos. A análise do consumo em uma perspectiva orgânica e processual implica forçosamente a contemplação dos pólos distintos e dialógicos da produção e da recepção.

Segundo consta de documentação institucional elaborada pela Coordenação do Programa, temos que este é o primeiro e único PPGCOM brasileiro inteiramente dedicadoao estudo da interface entre comunicação e consumo, e das relações a ela articuladas. Com o desafio de consolidar um novo campo de estudo, originalmente mediante o Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Práticas de Consumo, criado em 2003, a equipe do Programa assumiu os riscos e os benefícios característicos de um projeto de tal monta, pioneiro e original. Assim, a formação e o amadurecimento científico obtidos correspondem, historicamente, ao estado da arte da discussão proposta, inovadora por princípio.
Seguir nesta empreitada exige encarar de frente as teses que, com consistência, colocam o consumo na berlinda. Exige, ainda, enfrentarmos os meandros da demonização do capital. Costurando estas visões de mundo, um personagem é presença mais do que constante, e isto não acontece de modo aleatório. O consumismo desenfreado – a compulsão do comprar, o servilismo mercantil, a mercantilização obsessiva da vida e dos afetos, a medicamentalização de toda e qualquer insatisfação – oferece, em efeito rebote, munições mais que adequadas para as críticas que associam as sociedades do consumo com rupturas do coletivo, com patologias narcisistas, com a produção desenfreada de excessos das mais variadas ordens e implicações (Cf. ROCHA: 2012).
Defendendo uma visão sistêmica da comunicação e do consumo, os estudos desenvolvidos no PPGCOM consideram a articulação entre materialidades do consumo, produtos midiáticos, representações sociais, narrativas, imaginários, mediações, medialidades e seus respectivos operadores simbólicos. A compreensão do consumo como fenômeno sociocultural complexo, historicamente mutável, comunicacional e midiaticamente estruturado, constitui a base epistemológica que fundamenta nossa proposta, diferenciando-a de estudos anteriormente desenvolvidos no campo, seja sobre o consumo cultural, seja sobre a comunicação publicitária, corporativa e/ou mercadológica. Esta especificidade coloca-nos em condição de protagonismo nos debates sobre a conjuntura, os limites e as transformações das sociedades hodiernas.
Na atualidade, o conceito de consumo se caracteriza como lócus de problematização das proposições teóricas “clássicas” sobre a sociedade de massa, as culturas midiáticas e o fenômeno do consumismo, tornando-se fundamental para pensar as mais variadas práticas sociais, desde os modos de inserção, participação, educação e cidadania, até questões relativas às mudanças do mundo produtivo e do trabalho; às tecnicidades; às materialidades, às mediações e medialidades; à articulação entre ética e estética; aos projetos de desenvolvimento; às demandas por sustentabilidade; à construção das identidades; às memórias, narrativas, sensórios, sociabilidades e imaginários emergentes nas contemporâneas culturas midiáticas e do consumo.
Problematizar as práticas e o ciclo do consumo, na sua dimensão material e simbólica, significa refletir sobre uma temática de complexidade, que entrelaça as dimensões estruturais da sociedade às experiências mais corriqueiras e ordinárias de nossa vida cotidiana. Nesta perspectiva, o conceito de consumo, apreendido desde os aportes peculiares ao campo da comunicação, constituiu-se em um lugar estratégico para se indagar sobre a emergência de uma nova reflexividade na vida sociocultural da atualidade.
As Linhas de Pesquisa do PPGCOM-ESPM indicam claramente o recorte que circunscreve o foco da formação pretendida, contemplando: os processos de recepção e os contextos socioculturais; e as lógicas de produção e as estratégias midiáticas, ambos articuladas à comunicação e ao consumo. O Programa mantém-se alinhado com os objetivos da sua proposta inicial, a saber, a consolidação das reflexões atinentes às relações entre comunicação e consumo, tendo obtido resultados que atestam sua vocação para a elaboração de consistente repertório teórico-metodológico na abordagem desta problemática. O consumo é assim percebido como dinâmica complexa, contemplando o trânsito entre a produção e a recepção. Em direção similar, entrelaça-se o consumo material e imaterial, dimensões presentes tanto na produção e recepção de bens e serviços, quanto no consumo cultural, midiático e simbólico.
O plano das materialidades e imaterialidades apreende-se de modo diacrônico e sincrônico, considerando suas diferentes implicações culturais, políticas, econômicas e históricas. As perspectivas teórico-metodológicas do Programa caracterizam-se pela interdisciplinaridade, pela ênfase na abordagem qualitativa e multimetodológica, mobilizando autores de distintos campos de conhecimento, mas norteando-se com a consolidação de saberes peculiares ao campo da Comunicação.

Este Programa apresenta, pois, como características principais: a) perspectiva multimetodológica e interdisciplinar; b) visão ampla da comunicação na sociedade, reconhecendo sua centralidade (sociocultural) e sua dimensão estratégica (em termos acadêmicos e reflexivos); c) visão igualmente ampliada, ética e esteticamente fundamentada, do debate sobre o consumo, concebido como fato social e cultural relevante em termos teóricos e merecedor de abordagens epistêmicas que o distinguem de lógicas meramente reprodutivistas; d) flexibilidade que permite aos pós-graduados obter os conhecimentos referentes à área de concentração e o aprofundamento em um dos eixos temáticos especificados nas linhas de pesquisa do Programa; e) integração qualificada e formativa com a graduação; e f) dinâmica pesquisa-ensino com ênfase na inserção nacional e na consolidação da internacionalização.

Assumindo que a abordagem da comunicação em interface com o consumo refere-se a um fenômeno sociocultural, a uma prática que tem implicações para além do ato da compra, dos índices de venda e das questões de mercado, investiga, de modo amplo: a) fenômenos, processos e objetos comunicacionais articulados ao campo do consumo, concebendo o plano da produção e da recepção e a constituição da cena midiática; b) formação da identidade e processos de subjetivação permeados por dinâmicas de consumo e/ou mercadológicas; c) relações comunicação/educação/consumo, percebidas em suas implicações pedagógicas, na agenda nacional e internacional; d) processos históricos de desenvolvimento e lógicas do sistema capitalista no Brasil e no mundo; e) representações, narrativas, memórias e imaginários articulados a produtos midiáticos e a produções culturais; e f) suas manifestações junto a grupos/comunidades específicos.

Tomando estas abordagens como guias epistêmicos, temos que é imperscindível detalhar o que exatamente podem ser os efeitos perversos da chamada “hipertrofia da economia capitalista” (FREIRE COSTA: 2004). O autor sugere que há grande imprecisão na “significação e na periodização histórica” da noção de consumismo. Neste sentido, ele acrescenta que, “A imprecisão se reflete na interpretação. Ao analisarmos o que significa consumir, quais são os objetos que consumimos e em quais circunstâncias históricas consumimos, vemos que o sentido do consumo muda completamente” (FREIRE COSTA: 2004, p.132)

É muito esclarecedor colocarmos este argumento de Freire Costa com as ponderações de Maria Aparecida Baccega, decana do PPGCOM-ESPM. Segundo Baccega (2008), “Metáforas e narrativas que definem o consumo e o consumidor, muito usadas pela linguagem publictária e pela sociedade como um todo, constroem um espaço conceitural no qual se entrecruzam tendências que, embora pareçam contraditórias, acabam por revelar a complexividade do ato mesmo de consumir, no qual aparecem tanto os traços das representações promovidas pela mídia e pelas transformações intensas das relações sociais em mercadoria, quanto as múltiplas formas mais personalizadas do ato de compra, as quais se desenvolvem de acordo com os novos territórios de pertencimento e que também constitutem a identidade do sujeito. A linguagem do consumo transformou-se numa das mais poderosas formas de comunicação social”. (BACCEGA: 2008, p.3).

Segundo Rocha, enfrentamentos desta ordem dizem respeito não apenas à necessária discriminação entre consumo e consumismo, escapando da armadilhas da oposição pura e simples entre um e outro. Adotando um marco periodizante, arrisco dizer que qualquer discussão ética e academicamente comprometida das culturas do consumo contemporâneas significa analisar o forte componente comunicacional que tais culturas adquiriram, desde a modernidade mas, sem sombra de dúvida, cristalizando-se nas sociedades pósindustriais. (ROCHA: 2012)

Para Rose de Melo Rocha, coordenadora do PPGCOM-ESPM, este consumo que constitui identidades o faz, hoje em dia, muito menos pela posse de objetos mas, essencialmente, pela manipulação de imagens-estilos-de-vida. O consumo parte da materialidade e a ultrapassa. Nesta direção, pensar o consumo é analisar a lógica pendular escassez/excesso, considerando, ademais, os momentos em que ele é inclusivo e, não seria demais afirmar, a legitimidade da inclusão por esta via (ROCHA: 2012). O que nos falta e o que produzimos em demasia; o que nos falta e o que consumimos em demasia. Pela via das narrativas e das memórias do consumo, este debate se atualiza e ganha gramatura ética e esteticamente responsável. Na memória se revela o sujeito que narra, e na sua narrativa a memória que nele deixaram as vicências do consumo. Na narrativa memoriográfica, na anamnese do consumo deixamos de ser por ele consumidos. Aos moldes de Macunaíma, narrando nossa vida num mundo povoado de objetos, de serviços, de produtos e audiovisualidades publicitárias e propagandas as mais diversas, tomamos a palavra. Para falar não apenas dos excessos, mas também dos acessos, não apenas do que sobra, embora, como disse o cantos, “raspas e resos” nos interessem. As narrativas sobre o consumo são lugares de subjetivação e, inclusive, reveladores de faltas, de vazios, de pausas.

Memória/Narrativa/Memorial/Museu

Memória: ato de lembrar, reter o que já passou; a reminiscência, o esquecimento. No ato memorioso, lembrar e esquecer, recuperar e apagar articulam-se num jogo dialógico fruto do presente, um ato de reconstrução, restituição, restauração dos tempos pretéritos cuja base está no momento atual, aquilo que se tem como importante, preponderante, no imaginário de hoje (Pereira, 2004). Assim sendo, a memória reconstrói a própria relação entre passado e presente e o sentido que se dá à história.

Não por acaso, o final do século XIX e início do XX, foi o momento em que vários autores, na filosofia, literatura, sociologia, voltaram-se para essa questão. Um momento em que a industrialização e outras características da modernidade pareciam evidenciar uma aceleração dos tempos, fazendo com que, no turbilhão da modernidade, a busca pela memória se tornasse indispensável, como uma tentativa de reconstrução da própria experiência, no sentido posto por Benjamin.

Desde então, a memória tem sido protagonista em resguardar traços do passado como forma de se contrapor aos efeitos desintegradores da rapidez contemporânea. Segundo o historiador Pierre Nora (1993) observa-se na atualidade a crescente necessidade de criação de “lugares da memória”, num tempo em que a aceleração da história parece não permitir mais o tempo de lembrar. A rapidez e o processo de globalização (ou mundialização, ou pós-modernidade – assuma-se a designação e o arsenal teórico decorrente que se quiser adotar), características da atualidade, impelem a viver em um mundo que parece se tornar um só, comprimido temporal e espacialmente; onde o efêmero e o incessantemente novo imperam, a duração de um fato histórico tem a mesma duração de uma notícia e a história torna-se eternamente contemporânea. Assim, imperiosa é a busca pelo passado, por meio da memória.

Ao tratar da memória coloca-se como questão chave a noção de poder. O que se quer guardar, o que se quer esquecer? Quem está autorizado e legitimado a decidir aquilo que é memorável e “mereceria” ser lembrado? O historiador Jacques LeGoff (1988), adensa este debate ao comparar as noções de documento/monumento, sendo a transformação de um documento em monumento uma questão de poder, haja vista a intencionalidade em guardar o passado e celebrar alguns fatos em detrimento de outros. O que nos parece fundamental desta discussão é o fato de que documento não deve ser visto como algo separado do monumento, mas numa reciprocidade, em que documentos são produzidos segundo intencionalidades de temporalidades e de grupos sociais, devendo ser continuamente repensados, atualizados e reconstruídos numa dinâmica inerente aos próprios fluxos da memória.

Dentro deste debate é que postulamos a criação do Memorial do Consumo, a partir da consideração de um passado conservado e atuante no presente; não no sentido cristalizador do fenômeno do consumo, mas como algo que pode ser um lugar de atualização, restituição do passado e do presente.

Em geral costuma-se associar o termo memorial com práticas identificadas com a noção de palco de homenagem ou de sacralização de memórias. Ainda que no senso comum Museu e Memorial possam ser entendidos como sinônimos, ou seja, lugares de conservação e exposição de coleções materiais e imateriais de caráter cultural e social, acreditamos sernecessário aos interesses dessa proposta delimitar certa distinção entre os termos.

Aqui, a noção de memorial refere-se à sua matriz etimológica relacionada com “uma certa forma de escrever”, considerando que o jogo de lembrar e esquecer pressupõe uma intencionalidade que aqui se fará orientar pelo contexto do consumo. Portanto não se trata de qualquer memória ou de qualquer elemento da historia, mas sim de uma seleção. Nesse sentido é que o termo memorial se faz legitimo portador da intencionalidade dessa proposta.

Mais ainda, propomos como central para o Memorial do Consumo o acervo de narrativas e memórias dos sujeitos sobre o consumo. Atentamos para as especificidades das “histórias de vida”, pois ao rememorar a sua trajetória de forma mais completa possível, o narrador-sujeito se esforça para a construção de sua própria identidade, num resultado de apropriação simbólica do real, contando suas experiências, emitindo suas opiniões. Dando sentido aos gestos e fatos, o memorioso se torna sujeito de seus próprios atos, percebendo seu papel singular na totalidade social. Por serem dotados de força narrativa, apresentam aspectos da realidade vivida fundamentais ao pesquisador, tornando-os elementos de riqueza incomparável (Pereira, 2004).

As noções de narrativa, tempo e memória advindas das discussões hermenêuticas se mostram como importantes contribuições e balizas para a interpretação das narrativas de si elaboradas pelos sujeitos que relatam suas experiências de consumo. A contribuição de Paul Ricoeur (1985), em especial, passa pela sua noção de narrativa, em que o tempo só se torna humano por meio desta, permitindo a construção da memória (no seu jogo de lembranças e esquecimentos) e das identidades, dando sentido às trajetórias de vida dos sujeitos.

Sobre acervos virtuais

A modernidade tem no espaço dos museus físicos sua forma mais comum e disseminada de lugar de memória. Espaço da arte sacralizada, gabinete de curiosidades, ou de exposição de elementos das ciências naturais, enfim, daquilo que foi legitimado e considerado exemplar para ser exposto, o museu tradicional lida com o passado de maneira positivista ou no sentido de monumento aludido por LeGoff, em muitos momentos. Arturo Castellary (2009) argumenta o quanto as possibilidades da cultura digital podem romper os muros dos museus, bibliotecas, das instituições de memória, universalizando ou ampliando o acesso público aos bens culturais.

Assim sendo, temos como diretriz a construção do Memorial do Consumo a partir de uma plataforma digital, articulando assim outras formas de pensar o acervo que não apenas as tradicionalmente colocadas pelos museus. Sua inspiração inicial assenta-se naquilo que alguns autores vêm chamando de museu virtual interativo, termo recente e controverso que carece ainda de uma delimitação mais consensual por seu caráter de contemporaneidade.
Como salienta Rosane Carvalho (2008): “Embora as funções museológicas sejam as mesmas, no mundo físico e no ciberespaço, os museus apresentam características diferenciadas: os museus no espaço físico apresentam materialidade, ênfase na obra única, permanência, estabilidade, caráter institucional por definição, linearidade, processo de comunicação e transferência de informação unidirecional e assimétrico; tendência à separação dos pólos receptor/emissor. Os museus no ciberespaço se caracterizam pela imaterialidade, ubiqüidade, provisoriedade, instabilidade, caráter não necessariamente institucional, hipertextualidade, estímulo à interatividade e tendência à comunicação bi ou multidirecional. Logo, as mensagens e a linguagem de cada meio deverão levar em conta o comportamento do visitante de cada um destes ambientes.” (Carvalho, 2008, p. 84).
Para atualizar o conceito tradicional de museu partimos da inspiração lançada por André Malraux (2000) e sua noção de “biblioteca imaginária” ou “museu imaginário”, traduzindo a idéia primeiramente de um museu de imagens para depois vir a significar um museu do imaginário, onde imagem e imaginário dialogam e se complementam a todo instante. Sobre a questão da imagem, aponta Silva (2002), Malraux remete à própria reprodutibilidade técnica que possibilita o conhecimento de imagens mesmo sem irmos a um museu ou a lugares da antiguidade. Já a noção de museu imaginário, traz a idéia de “lugar mental”, espaço imaginário, sem fronteiras que nos habita; ele não tem limites, descentralizando e desierarquizando a cultura, podendo reunir uma produção mais erudita (pintura, escultura, musica, literatura, etc.) e elementos da cultura midiática (publicidade, imprensa, radio, televisão, cinema, etc.) igualmente mediados pelas tecnologias digitais. Nesta concepção, as obras revelam, sobretudo, uma relação com conteúdos anteriores que metamorfoseiam novas possibilidades, onde a intertextualidade e a correspondência entre as obras surge como questão essencial na noção de museu imaginário. Museu, biblioteca, lugares de memória privilegiados onde as obras podem re-significar umas às outras.
A partir desta noção inspiradora de Malraux, discute-se atualmente a própria noção de museu a partir das possibilidades trazidas pela web, tanto no que concerne as formas de reunir conteúdos, quanto na utilização das ferramentas de interatividade. Analisando o volume de museus/acervos disponíveis na internet nos deparamos com três tipos de sites: o folheto eletrônico, o museu no mundo virtual e o museu interativo. Estes dois últimos podem ser encontrados associados tanto a um museu/acervo físico quanto apenas existir no mundo virtual.
Quanto ao folheto eletrônico, trata-se de uma publicação em forma de peça promocional, um catálogo ou apresentação online das especificidades de um museu, apresentando endereço, horário de funcionamento, calendário de exposições, um breve histórico da instituição. O museu no mundo virtual consiste numa criação no ciberespaço vinculada ou não a um museu físico, seja na apresentação de seus conteúdos ou na simulação da forma de visitação, mantendo banco de dados de exposições anteriores e a possibilidade de visitas virtuais. Por fim, o museu interativo que, mesmo conservando em alguns casos características de um museu físico, possui ferramentas que possibilitam ao visitante interagir com os conteúdos apresentados. Desse modo enfatizamos que a existência numa plataforma digital parece não bastar como critério para a definição de um museu virtual como museu interativo.
De maneira análoga, os museus físicos também podem utilizar a interatividade como recurso. Segundo Castellary (2009) há museus físicos que já nascem como museus interativos, incorporando esse recurso e os postos multimídias à sua própria linguagem expositiva, o que já ocorre em museus de temáticas muito diversas, de antropologia, de arqueologia, de astronomia, do campo científico, como no caso do Museu da Língua Portuguesa e do Museu do Futebol.
Para compreendermos melhor o universo no qual o Memorial do Consumo se insere foi realizada uma pesquisa exploratória sobre sites de museus e acervos na internet, de modo a obtermos dados para orientar a elaboração de critérios pertinentes a configuração do espaço virtual desse projeto. Essa atividade foi desenvolvida com a colaboração da bolsista Carolina Junqueira (entre setembro de novembro de 2011), que elaborou um levantamento das diferentes categorias de acervos, seus formatos e tipos de conteúdos disponibilizados. A bolsista pesquisou e levantou referências de sites com características relacionadas com a noção genérica de museu virtual (museu online, museu eletrônico, hipermuseu, museu digital, cibermuseu ou museu na web). Como estratégia para a primeira etapa desse levantamento, o cenário foi dividido em quatro tópicos: museus virtuais; arquivos públicos e temáticos; museus físicos com sites (arte, história e ciência) e acervos virtuais diversos relacionados à área da comunicação e do consumo. Essa pesquisa nos permitiu constatar a pertinência desse debate, de modo a elegermos a abordagem mais adequada para os propósitos do Memorial do Consumo.
Diante desse cenário pudemos compreender a concepção dos contornos e extensão da temática dos acervos virtuais, considerando a proposição de Antonio Bratto (1999), que afirma que para pensar um museu virtual e interativo é preciso, não apenas desenvolver sites com boas ferramentas de navegação, mas criar uma nova consciência digital na comunidade de museólogos e nos próprios visitantes/consumidores; um museu virtual e interativo se configura como outro tipo de museu, paralelo ou não ao real, mas com vida própria.
Orientadas pelas idéias acima é que foram delineados os contornos do Memorial do Consumo, cujos propósitos conceituais e operacionais estão sendo aplicados no desenvolvimento do site e nos procedimentos de alimentação dos conteúdos.

Memorial do Consumo – Concepção e filosofia do acervo

O Memorial do Consumo é um projeto de concepção e montagem de um acervo digital sui generis: em constante atualização, é composto por registros de memórias e narrativas sobre o universo do consumo, suas práticas, imaginários e materialidades. Considerando o papel das tecnologias digitais no fomento do espírito investigativo na contemporaneidade, trata-se de um museu virtual interativo voltado ao mapeamento, exploração e análise de narrativas visuais, textuais e sonoras. Sua proposta é propiciar sondagens e vivências perceptivas aos seus usuários, oferecendo, ainda, reflexões teóricas e ensaios. Construindo pontes entre o mundo acadêmico e o não acadêmico, coloca em diálogo diferentes perspectivas e visões de mundo, vindo do campo da produção e da recepção – pesquisadores, produtores e consumidores.

Tem por objetivo reunir conteúdos que possibilitem investigar aspectos da interface comunicação-consumo, analisar práticas e culturas do consumo a partir de suas relações com processos e fenômenos da comunicação, práticas de recepção, experiências estéticas, cultura e estratégias midiáticas, materialidades e produção imaginária. Seu propósito e relevância assentam-se na eleição das culturas comunicacionais e do consumo como elementos marcantes da vida cotidiana, postas em discussão no âmbito da investigação acadêmico-científica de excelência praticada pelo PPGCOM-ESPM.
Os conteúdos apresentados no Memorial do Consumo serão construídos de forma colaborativa, articulando as competências dos narradores que contribuirão com o projeto com a expertise e pesquisa dos professores do Programa. Pensar o consumo é projetar o futuro da comunicação. Pensar a comunicação é localizar a função estratégica do consumo na sociedade, na cultura e na agenda pública nacional, inserindo o debate nos principais fóruns científicos mundiais.

Delimitação dos Conteúdos e Estratégia de Organização

Entendemos como conteúdo do acervo: narrativas sobre consumo de diferentes sujeitos (receptores, consumidores, produtores); materialidades sobre consumo (imagens de rótulos, embalagens, produtos, campanhas publicitárias; jingles; revistas, anúncios, etc.); interpretações sobre consumo (ensaios e textos acadêmicos sobre o fenômeno do consumo, bem como intervenções artísticas que tratem desta temática).
Para fins de organização propomos como estratégia uma divisão/agrupamento em espaços dedicados a cada um dos enfoques elencados, conforme descrito abaixo:
a. Teia das Memórias – acervo de narrativas de sujeitos: Vozes da recepção(consumidores) e Vozes da produção (produtores)
b. Teatro das Materialidades – acervo de representações de embalagens, produtos e serviços, jingles,etc.
c. Tubo de Ensaio – acervo de interpretações sobre o consumo: Cápsulas para consumo (ensaios) ; Vetores (artigos científicos); Derivas (intervenções poéticas)

Esses tópicos podem se apresentar em diferentes linguagens (texto, áudio, imagem, vídeo) e serão resultado da colaboração dos internautas e de ações coordenadas pelo PPGCOM. Para isso a plataforma foi projetada de modo que seja possível aos visitantes navegar pelos diversos núcleos de acordo com seus interesses, selecionar conteúdos em sua área pessoal e, sobretudo, possam fazer uploads de suas contribuições de acordo com as categorias e temáticas apresentadas. Já os professores poderão utilizar essa ferramenta para obtenção de dados para seus projetos de pesquisa, bem como utilizar o acervo como fonte de reflexão e produção de textos, artigos e ensaios.
Atualmente estamos finalizando o projeto de construção do site que abrigará os conteúdos já produzidos, o que permitirá uma verificação mais efetiva das diretrizes de funcionalidade e interatividade elencadas conceitualmente. Assim que a plataforma digital que abrigará o Memorial do Consumo estiver no ar, a tarefa de consultoria (até aqui orientada para a concepção e realização deste projeto) naturalmente migrará para um trabalho de Curadoria de Acervos.
Isso porque, devido ao caráter dinâmico das informações na contemporaneidade,bem como por seu vínculo com a pesquisa acadêmica, esse acervo pressupõe uma ação continuada de investigação e produção, de modo a estabelecer dinamicidade e recortes diferenciados que ampliem as possibilidades de conhecimento e aplicações de seus conteúdos. Nesse sentido é fundamental que o acervo seja alimentado sistematicamente, no que propomos a inserção constante de novas “narrativas”, “materialidades” e de novas “interpretações”, filtradas e pensadas por uma ação de curadoria. Ainda para atender adequadamente aos objetivos propostos, acreditamos na necessidade de um equilíbrio desses conteúdos, tanto no que concerne aos tópicos elencados quanto às diferentes linguagens, ação também atribuída à curadoria das consultoras.
Por fim, para que o acervo se constitua como espaço de referência e atenda ao propósito conceitual anteriormente descrito, consideramos que a divulgação da informação é tão importante quanto sua obtenção. Portanto deverão ser elaboradas periodicamente estratégias para essa visibilidade, tais como debates, exposições temáticas, eventos em geral, como desdobramentos do trabalho de curadoria.

REFERÊNCIAS

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ROCHA, R. L. Poéticas visuais e percursos imagéticos: caminhos para se pensar o consumo. Capítulo de livro inédito. 2012
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