Desejo de marcar, algo demasiadamente humano

 

(…) minha tática é ficar em tua lembrança não sei como nem sei com que pretexto porém ficar em ti

(…) minha estratégia é em outras palavras mais profunda e mais simples minha estratégia é que um dia qualquer não sei como nem sei com que pretexto por fim me necessites.

(Versos de “Tática e estratégia”, do poeta uruguaio Mario Benedetti)

As marcas comerciais nos identificam. Em contrapartida, nosdesejosas marcas pessoais dão sentido ao que é potencial nas estratégias comerciais, projetos de mundos possíveis comunicados a nós constantemente pela mídia. Demarcando territórios imaginários, as marcas sinalizam um lugar só existente quando ocupado pelos usos e apropriações dos indivíduos.

Em nosso tempo, a primeira coisa que vem à mente quando se fala de marca é a sua configuração comercial. Nomes globais como Coca-Cola, Nike, Apple sempre são lembrados. Néstor García Canclini, em seu livro “Consumidores e cidadãos”, tratou de discutir o papel político das marcas, e que podemos ser cidadãos globalmente unidos pelos modos de consumir. Quando recorremos aos significados da palavra marca, vemos que sua tradição é longa na história humana, e suas aplicações são várias. Vejamos trechos do Dicionário Houaiss: “ato ou efeito de marcar (…) traço; sinal, impressão deixada por alguém ou algo (…) desenho, inscrição, nome, número, selo, símbolo, carimbo etc. que se coloca sobre um artigo para distingui-lo de outros, ou como indicação de propriedade, qualidade, categoria, origem”. Há dois sentidos principais que se repetem, dentre os significados do termo: o sentido de pertencimento, de marca que identifica origem, propriedade, um território, um lugar, concreto ou simbólico. Outro é o sentido da distinção, da marca que diferencia, que é única. Eis um movimento duplo próprio do ser humano desde sempre: pertencer e ser único. Ser igual a outros e ser diferente. Em nossas práticas sociais, interações, em nossa história, deixamos rastros, impressões, desenvolvemos relacionamentos, enfim, construímos marcas. A sociedade de consumo acentuou o papel das mercadorias nessa construção dos rastros de nós mesmos. Veblen, em seu livro “A teoria da classe ociosa”, escrito no século XIX, identificava na formação das grandes metrópoles a necessidade do parecer para ser. Às classes abastadas da época, os nobres da sociedade de corte, era necessário ostentar, uma vez que conhecer o outro pela convivência, reconhecer o estilo de vida para além da estética, era algo com possibilidades cada vez mais restritas em meio à multidão. Daí a relevância dos bens e das marcas para dizer sobre nós, como signos visuais reconhecíveis nos deslocamentos e fluxos das cidades. Essa mediação através das marcas se torna mais complexa contemporaneamente.

É inegável que as marcas são protagonistas em alguns momentos do espetáculo midiático, porém, na esfera cotidiana, a marca parece ambicionar o papel de coadjuvante. Fazer parte do cenário. Integrar-se, desintegrar-se, ser consumida na vida dos indivíduos. Como bem demonstra a atual campanha de reposicionamento conceitual da bandeira de cartões de crédito Visa. O comercial “Go”, que traz o slogan “mais pessoas vão com Visa”, no mais típico gênero “slices of life”, apresenta fragmentos da vida cotidiana, mitificados pelo tratamento audiovisual da publicidade. No comercial, vemos gestos, expressões corporais unificados por uma sugestão de atitude humana, de comportamentos que podem prescindir das mercadorias. Fazer algo novo, persistir, lutar pela realização de seus desejos. Onde entra a marca? Apenas na sugestão implícita de seu uso, em meio às opções de vida dos indivíduos. Como pensar em “evangelização”, ou outros conceitos mercadológicos que tratam da fidelidade às marcas como elemento reorganizador da vida? São indivíduos, antes de consumidores da marca, que objetivam a produção de suas marcas pessoais. As mercadorias são táticas, e como tais, podem ser pontuais, fluídas, fugazes. A estratégia do ser diante da vida é tornar-se necessário, integrar-se, identificar-se, ter reconhecimento, como profissional, por suas atitudes, pelos papéis que exerce, pelos afetos que compartilha. Enfim, na trajetória humana, na construção das marcas de si, o indivíduo se sobrepõe às marcas comerciais. O desejo de marcar é o sonho humano, mediado, “re-sonhado” pelas mensagens persuasivas do consumo.

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