O relógio de bolso de meu avô

Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo tempo tempo tempo Entro num acordo contigo Tempo tempo tempo tempo… (Oração ao tempo, Caetano Veloso)

Guardo comigo o relógio que fora do meu avô. Com ele, desenvolvi uma relação íntima, silenciosa, uma espécie de pacto que aqui transformo em narrativa. Por meio desse exercício, permito-me pensar em algumas conexões entre o tempo e o consumo, enquanto gravo parte de minha memória na órbita de seus ponteiros. Ponteiros, sim. E cordas. É um velho relógio de bolso, que chegou às minhas mãos quase por acaso, jogado que estava no fundo de uma gaveta. Não foi uma herança direta de meu avô, acompanhada de conselhos, de filosofias e sabedorias populares, de um cerimonial revestido de nobreza. Apenas o resgatei do esquecimento e da inatividade, em ato sem qualquer glamour.

relogioA convivência com meu avô é de uma época da qual tenho guardados poucos flashes; era novo demais para registrar algo além de imagens obscuras congeladas no tempo. Lembro da estatura baixa do velho Chiquinho e de seu chapéu, da casa pouco iluminada onde morava, do jardim à frente, dos portões baixos e das muretas altas – na entrada e na porta da cozinha, para tentar conter as insistentes águas do Rio Aricanduva. Lembro do retrato antigo pendurado na parede, dele ao lado de minha avó, já falecida naquele momento. Pouco tempo depois meu avô se mudaria para uma longínqua cidade do interior – onde viveu seus últimos anos -, e desde então não nos vimos mais.

“O tempo como símbolo, como sistema simbólico, portanto, como texto cultural, passa a desempenhar um papel de vital importância na organização das sociedades, mas também de crucial complexidade e abstração, dada a sua natureza simbólica, vale dizer, social e contratual, vale dizer, histórica” (Baitello Junior, 1999, p.97). Pelo relógio, volto a outro tempo. Um tempo de memórias recentes, de formação e entrada na vida adulta, de incertezas, de pequenas batalhas diárias. Fazia faculdade de publicidade: nada mais desestimulante para um candidato a produtor da retórica do consumo do que o desemprego e suas privações. Fazia malabarismos para honrar as mensalidades e conquistar meu diploma, na esperança vaga de uma vida menos racional e “contabilizada”, como dizia Simmel.

Tinha na época um relógio digital, que me foi roubado. Foi quando me lembrei do relógio de bolso. E de como ele poderia ser uma alternativa naquele momento. Colocá-lo para funcionar sairia mais barato do que a compra de um novo; pensava, ingenuamente, que ocultá-lo nos bolsos de minhas calças jeans me daria uma sensação de segurança, pois poderia “despistar” outro assaltante que cruzasse meu caminho. Esse relógio me acompanhou por bons anos. Trabalhamos juntos. Entre tics e tacs, conclui a faculdade, comecei e encerrei minha breve carreira como publicitário, entrei na vida acadêmica. Com a convivência, o relógio de bolso passou a incorporar afetos e passou a representar um (in)certo estilo com o qual tentava me identificar.

Até que, certo dia, por descuido, o relógio caiu no chão. Mesmo trocando seu mecanismo, nunca mais voltou a ser pontual, apesar de minha insistência em voltar seguidas vezes ao relojoeiro que me garantira ser possível consertá-lo – espertamente, antes de iniciar o serviço. Naquele momento, minha vida já era outra. Os tempos mais difíceis haviam sido superados, tinha melhores condições e planos para o futuro. Estava com um doutorado em curso. Enfim, comprei um novo relógio para não perder os compromissos.

Mas nunca abandonei o velho relógio de bolso, até hoje, mesmo que ele me obrigue ao ritual diário de dar corda para que prossiga mais uma de suas curtas e incertas jornadas. Procuro entender o que esse consumo tem a dizer sobre mim e para além do meu universo particular. Lembrei-me das palavras de Baudrillard (1989, p.127): “qualquer que seja o funcionamento do objeto, nós o experimentamos como NOSSO funcionamento”. Há um processo de identificação entre sujeitos e objetos, estabelecido em uma zona de interinfluência: utilizamos objetos para comunicar, para produzir significados, para narrar algo sobre nós mesmos, nessa cultura de consumo em que o que se é materializa-se no que se torna visível ao outro. Simultaneamente, os objetos incorporam traços humanos por meio do design e da atribuição de significados potencializados pelas narrativas do consumo, especialmente as publicitárias. A utilidade é uma construção social, e a inutilidade uma necessidade de escape, de não-rendição às engrenagens que nos instauram como mais uma peça no sistema: de qualquer ponto na superfície da existência, por mais que ele pareça brotar apenas nessa superfície e a partir dela, se pode sondar a profundidade da alma, que todas as exterioridades, mesmo as mais banais, estão ligadas, por fim, mediante linhas de direção, com as decisões últimas sobre o sentido e o estilo da vida (Simmel, 2005, p.580).

Nessa rotina diária, o velho e ineficiente relógio de bolso me faz recordar de algumas coisas que hoje considero fundamentais, que bem poderiam ser os ensinamentos não transmitidos por meu avô, ou que ele talvez tenha incumbido o relógio de me transmitir com o tempo:

– Que, assim como o relógio, sou falível, e se nem a máquina consegue se ajustar plenamente ao ritmo automatizado da vida, concedo-me o direito a alguns erros diários e a me divertir com eles.

– Que nem tudo é efêmero e descartável nesta vida para consumo, pois conseguimos deixar marcas, rastros que permanecem, senão para a eternidade (afinal, o que é a “eternidade”?), ao menos para além do tempo previsto na esfera da produção – seja dos bens pelos homens, seja dos homens por Deus.

– Que a vida, os relacionamentos afetivos, os bons sentimentos devem ser cultivados a cada novo dia, até o momento em que já não nos é possibilitada essa função. Enquanto permaneço vivo e as engrenagens do relógio resistem, temos um acordo: eu cuido de mantê-lo em atividade; ele me faz recordar da natureza da existência, de sua intensidade e beleza, e ao mesmo tempo de sua fugacidade.

E quando eu tiver saído Para fora do teu círculo Tempo tempo tempo tempo Não serei nem terás sido Tempo tempo tempo tempo…

Referências bibliográficas

BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1989.

SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito” (1903). Revista Mana: estudos de antropologia social. Revista do programa de Pós-graduação em antropologia social do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 11, p. 577-591, 2005.

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