Desejo, sexualidade dissidente e sensibilidade queer no documentário “Lovely Andrea” de Hito Steyerl

O artigo “Oh bondage! Up yours! Sexualidades dissidentes e manifestações não-normativas do desejo na obra de Hito Steyerl”, de Gabriela Machado Ramos de Almeida e Jamer Guterres de Mello, nos propõe um caminho de análise do documentário Lovely Andrea (2007), da artista, ensaísta e professora Hito Steyerl, a partir da chave da sensibilidade queer em diálogo com os feminismos dissidentes – a partir dos pensamentos de Paul B. Preciado. O artigo apresenta um caminho de construção de um desejo dentro de práticas sexuais dissidentes – neste caso, o bondage – a partir do resgate de uma fotografia, sendo este resgate a trama do documentário de Hito Steyerl.

Devemos, antes de tudo, assim como o artigo, entender os contextos de partida dessa pesquisa e deste objeto. Gabriela Machado Ramos de Almeida é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP) e coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, consumo, imagem e experiência. Seu foco de pesquisa é a área do Audiovisual, com ênfase em Estéticas da Comunicação; Estética e Política; Consumo; Audiovisual; Estudos visuais. Jamer Guterres de Mello é professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), desenvolvendo pesquisas sobre a dimensão micropolítica no documentário contemporâneo e imagens originadas por tecnologias digitais. 

Recorte do documentário “Lovely Andrea” de Hito Steyerl

Os autores iniciam sua investigação a partir de uma localização da artista Hito Steyerl e de sua produção com uma perspectiva anticapitalista, sendo que trazemos aqui esta breve contextualização por eles feita. Hito foi eleita em 2017 a artista mais influente do mundo, de acordo com o ranking da ArtReview, sendo a primeira e única mulher a alcançar o topo desta lista. Hito tem sua produção voltada para o universo audiovisual e um posicionamento de questionamento às instituições de poder econômico, político e simbólico. O trabalho de Hito questiona o, por ela chamado, capitalismo audiovisual (âmbito onde estético e político não podem ser dissociados) e a instância de poder a partir da circulação das imagens – circulacionismo.

A partir da apresentação da vida, conceitos e obra de Hito Steyerl, os autores partem para uma apresentação do documentário Lovely Andrea. O documentário mostra a artista em uma busca transcendente de uma fotografia publicada em uma revista 20 anos antes, na qual ela era modelo para uma sessão de bondage (no Japão, Shibari). Os autores fazem uma breve localização do bondage como uma prática sexual, um ato de performance com viés de entretenimento e uma representação para ensaios fotográficos e audiovisuais, podendo ter ou não envolvimento com o sexo. Os autores realizam ainda uma colocação da corda, dentro da cultura japonesa, como objeto de representação milenar – em diversos espaços – que extrapola a ideia de fetiche e parte para um elo de comunicação entre dominador e submisso dentro do bondage, um contrato físico-corporal produzido pelas cordas como trazem Almeida e Mello.

O bondage, então, é uma prática japonesa derivada do Shibari, que utiliza a amarração com cordas com o objetivo de imobilizar e restringir as ações e movimentos da pessoa dominada, produzindo uma série de estímulos sensoriais que podem ou não estar relacionados ao erotismo e ao sexo. (ALMEIDA e MELLO, 2019, p.12)

A investigação dos autores se assemelha à jornada de Hito em busca de sua fotografia em diversos momentos. Elementos como apresentação histórica do bondage, deslocamento das práticas sexuais dissidentes frente à visão ocidental e posicionamento político estético (nos autores, através de seus referenciais teóricos e em Hito, através de sua lente que caça a fotografia) podem ser encontrados tanto no documentário quanto no texto.

Os autores seguem a pesquisa trazendo aspectos a serem suscitados no documentário, como por exemplo, a imagem de baixa qualidade, discurso guiado por entrevistas, imagens de arquivo, cortes rápidos e os encontros da artista com personalidade do universo do bondage japonês que irão guia-la ao encontro de si.

A partir dessa apresentação as questões do desejo, da normatividade e da autonomia sobre o corpo são trazidas. Almeida e Mello mostram como a visão de Hito propõe um outro olhar sobre a prática do bondage – remarcando o deslocamento em relação ao sexo, um questionamento da binariedade antipornografia e pró-pornografia e como os novos olhares propostos pelas micropolíticas queer reconfiguram o olhar do feminismo anti sexo que ressaltava essa binariedade.

Recorte do documentário “Lovely Andrea” de Hito Steyerl

Os autores continuam em uma construção/observação de lugares de poder a partir da obra de Hito, chegando até o momento que cumpriria o objetivo do documentário: o encontro com a fotografia da artista amarrada e suspensa. Dentro do documentário existe uma questão fundamental afeta à esta cena, a qual é trazida pelos autores: seria aquela foto/aquele documentário algo documental ou algo encenado? A resposta é clara: ambos seriam encenações. 

Se o bondage passeia de formas muitas vezes indistinguíveis  pelos  campos  do  sexo,  do trabalho e da representação, podendo eventualmente circunscrever as três instâncias, é por causa essencialmente de sua dimensão performática, que convoca tanto o ritual quanto o jogo, que borra as fronteiras entre real  e  representação,  entre  vida  cotidiana e estilização. (ALMEIDA e MELLO, 2019, p.21)

A partir deste ponto o pensamento do artigo se torna material: é partindo da sensibilidade queer presente em Lovely Andrea e do modo como as práticas de bondage são aproximadas das práticas contrassexuais no documentário que Hito cria um universo de questionamento tanto do espaço autoral, do universo BDSM e do repertório pornográfico tradicional, quanto das instâncias de poder deste capitalismo audiovisual.

Partindo desta concepção, os autores resgatam os escritos de Paul B. Preciado e Hito Steyerl quanto à criação de deslocamento das instâncias normativas (sociais, estéticas e políticas), a partir de produções artísticas dissidentes. Almeida e Mello (p.22) mostram que a pornografia pode se tornar então um mecanismo de ação política e de resistência às normatividades, ao capitalismo e às formas de exercício de disciplina e controle, em especial, no âmbito do desejo.

O artigo desloca o documentário Lovely Andrea para analisar suas potências e provocações, porém, não deixa ele mesmo de criar espaços de provocação teórica-artística, sendo, assim como o documentário e a obra de Hito Steyerl, um ato de performance (imagem e linguagem) política e estética frente às normatizações de sexo/gênero. 

REFERÊNCIA : Oh bondage! Up yours! Sexualidades dissidentes e manifestações não-normativas do desejo na obra de Hito Steyerl. E-COMPÓS (BRASÍLIA), v. 22, p. 1-24, 2019.

Daniel Zacariotti

Mestrando em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM, realiza pesquisas com foco em audiovisual, gênero, decolonialidade e Teoria Queer. Atua como Diretor e Produtor em projetos audiovisuais dentro do Coletivo Composto.

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