Yan Boechat, repórter, 44 anos
Com mais de 20 anos de carreira, o jornalista Yan Boechat é correspondente de áreas assoladas por guerras e conflitos desde 2003. Publicou reportagens em jornais e revistas como Gazeta Mercantil, Valor Econômico, Istoé, iG, entre outros. Atualmente é colaborador do Grupo Bandeirantes de Comunicação, Deutsche Welle e Folha de S. Paulo.

Foto: arquivo pessoal.
Recebeu menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos pela reportagem “Uma Favela no Maior Porto da América Latina”, foi finalista no Prêmio Citibank Journalistic Excellence Award com a matéria “Descoberta de reserva gigante cria corrida do gás em Minas Gerais” e ficou em segundo lugar no prêmio Íris América da Aliança Informativa Latino-Americana por “Terra arrasada”.
Viagens de Yan Boechat
2003 1ª Cobertura internacional: Afeganistão e Irã
2006 Angola
2010 África do Sul
2013 Oriente Médio (Tunísia, Egito, Jordânia, Líbano e Palestina) e Congo;
2015 Congo
2016 Iraque
2017 Síria e Gaza
2018 Afeganistão
2019 Venezuela, Síria e Colômbia (deve ir para o Afeganistão e Irã novamente)
Confira a seguir alguns dos relatos vividos por esse correspondente de guerra em suas inúmeras viagens, e conheça também os objetos angariados como lembrança.

Morte e barbárie
“Já tiveram várias vezes que as balas passaram bem perto de eu ouvir elas passando ao lado do meu ouvido. Já tive bomba caindo a poucos metros de mim, suicida se explodindo não muito longe de mim, enfim, felizmente, eu nunca me feri.
As pessoas tendem a achar que numa guerra você morre por tiros. É difícil morrer por tiro. Morrem por outras razões. Mais por bombas, bombardeios, IEDs (explosivos caseiros). Não é tão comum você morrer baleado, mas pode acontecer.
Na guerra as pessoas estão lutando pra viver e é uma luta muito instintiva. Tá dentro da gente a luta pela sobrevivência, né? Algo que a gente carrega no nosso DNA há milhares de anos. Então a condição humana está num estado meio bruto, né? Sem os filtros civilizatórios. É interessante ver esse tipo de coisa. De ver como a vida se desenrola em um ambiente extremo como esse. Muitas vezes é feio, outras, é bonito.

Foto: arquivo pessoal.
Tem uma cena que vivi que eu acho que ela demonstra de certa forma como a barbárie tá dentro da gente. Como nós seres humanos podemos abandonar um pouco desses filtros civilizatórios. Isso acontece muito na guerra. Uma vez eu estava voltando do front de batalha e retornando pra parte de trás, onde não tem confronto, mas ainda é uma zona de conflito. Eu estava no carro e a gente viu uma espécie de uma caveira pela metade pendurada num poste. No carro alguém falou ‘O que que é aquilo?’. Eu falei ‘Vamos voltar’. Voltamos, chegamos lá e vimos que era um ser humano com a parte de cima do corpo dele descarnada, sem carne, e a parte de baixo, com carne. E pendurado num poste, como se tivesse sido enforcado. Estava em bom estado. Eu me lembro que as unhas do pé estavam cortadas, era um cara asseado. E eu lembro da gente olhar aquilo, fazer umas fotos, e começar a parar um monte de gente, as pessoas fazendo selfie. Eu estava com outro grupo de jornalistas e a gente viu aquilo como algo estranho, mas não era nada muito demais. À noite, na mesa do bar, ficamos discutindo se era um homem, se era uma mulher, o que que era aquilo. Começamos a apostar. Alguém ia voltar no outro dia e baixar a calça pra ver se era homem ou mulher. Eu botei uma foto no Facebook dessa coisa, num tom de ‘aqui o pessoal não brinca’. Daí o editor de um jornal me mandou uma mensagem. Falou assim, ‘Cara, você tá louco?’. ‘Por quê? Do que você está falando?’, eu respondi. ‘Cara, você perdeu a capacidade de ver o que é notícia?’’Por quê?’ ‘Essa foto que você botou é a barbárie. É um troço absurdo, você precisa escrever sobre isso’. E ali eu me dei conta de como nós que estávamos ali há meses cobrindo aquilo ali, nós também fomos influenciados por essa situação toda. Acostumados a ver um monte de corpo na rua, de gente morrendo… Foi algo que chamou a nossa atenção, mas deixou de ser extraordinário. É mais ou menos o que acontece aqui no Brasil, de você vê as pessoas observando os corpos dilacerados na guerra urbana, crianças vendo aquilo, sem que aquilo os impacte. É muito interessante isso.”
Vida que segue
“Daqui de longe a gente tem a impressão de que a guerra é paralisante. Quando as coisas estão explodindo e os aviões estão despejando bombas, achamos que tudo fica freado. Só que na verdade, o que é muito impressionante ver, é que a vida segue. Numa guerra como em Mossul, que é uma guerra urbana, numa área concentrada, você tinha batalhas acontecendo aqui e a um quilômetro você tinha mercados funcionando. Pessoas vendendo e comprando. Circulando tiro de bomba. Caía um morteiro, todo mundo corria, depois todo mundo voltava. Vida segue. As crianças brincando na rua, os corpos jogados no chão, e a vida segue. As pessoas seguem se casando, fazendo sexo, comendo. Tudo. A vida sempre segue. Essa resiliência humana é um negócio impressionante também. Há até um senso de normalidade. A vida continua.”

Foto: arquivo pessoal
Comércio como vida social
“Principalmente no Oriente Médio, há algo impressionante nessa questão do comércio. Vou te dar um exemplo: chegue a Alepo dois meses depois depois que a cidade tinha sido ‘liberada’. Já não havia mais combate. Você caminha por Alepo e a impressão que você tem é que você está em Dresden, 1945 [segunda guerra mundial]. É uma destruição absoluta. As pessoas retornavam para aquele ponto e a primeira coisa que eles fazem é abrir um mercadinho. E vendem ali tudo que eles conseguem encontrar e que possa ser vendido. Azeitona, sabão em pó, lenço, qualquer coisa. Entendeu? O comércio faz parte da vida social. Ter comércio significa ter vida social. Estabelecer uma relação social naquela área. O que mais demonstra que a vida está voltando a esses lugares são os pontos de comércio. É a primeira coisa que se estabelece, antes de tudo.

Foto: arquivo pessoal
Você ia a Mossul, com as batalhas ocorrendo literalmente a um quilômetro e pouco. Os aviões passando. E os mercados estavam borbulhando de gente. Comprando fruta, comprando isso, comprando aquilo. Dentro dos campos de refugiados você tem

Foto: arquivo pessoal
comércio. As pessoas que saem de Mossul, dirigem e vão aos campos de refugiados no curdistão iraquiano. são quase campos de concentração, eles não podem sair de dentro dos campos. As pessoas pegam os carros, vão até as grades e começam a vender tudo ali. Tudo que você imaginar: brinquedo, roupa, comida, tudo. A questão do consumo é permanente nesses lugares.
Consumo em 1ª pessoa
“Eu sou um pouco consumista sim, eu gosto de comprar, eu gosto de ter, na verdade. Eu tenho apego a ter as coisas. Eu tenho aqui essa prateleira que eu guardo tudo das minhas viagens. Coisas que eu comprei, coisas que eu peguei. Tudo precisa fazer um sentido especial pra estar ali. Gosto de ter as coisas pra lembrar, que foram importantes pra mim. São momentos importantes da nossa vida.” (veja abaixo as fotos de alguns dos objetos angariados durante essas viagens).

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Coloca-se água e se deixa sob o luar.
Foto: arquivo pessoal

Feito de dentes de macaco, pode ser usado para matar ou ralar.
Foto: arquivo pessoal

Usada para ralar guaraná, à direita da foto
Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

presenteou Boechat com esta insígnia no campo de batalha (Síria).
Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Encontrada em uma igreja no Iraque.
Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal