Comunicação e consumo no rastro do flâneur

Ultimamente venho me perguntando se não é hora de mudar de ares. Moro no mesmo bairro, entre idas e vindas, desde os 18 anos; faz tempo. E por se tratar de um local reconhecido por aglomerações, baladas e festas, já não tenho mais certeza se é pra mim. Fui muito feliz aqui, só passei dessa fase e agora penso que em outro local, o custo de vida seria bem mais baixo. Talvez também fosse mais interessante estar próxima à faculdade nesse período de mestrado.

Só que tem algo que eu gosto demais no meu bairro. Apesar de conhecê-lo há tantos anos e como a palma da minha mão, ainda consigo me perder nele. A questão não é o GPS interno, que dá coordenadas de direção, realmente o meu veio com defeito, mas não é sobre isso que falo. Mas a capacidade de sempre encontrar algo novo, de deixar a rua, os caminhos me levarem. Uma descoberta exterior que me traz conhecimentos interiores, em um encontro com o inesperado.

Foto: Robin Benzrihem
Foto: Robin Benzrihem

Flâneur

Walter Benjamin explora este conceito nas suas passagens, quando descreve a paisagem parisiense do século XIX. Quem vaga, a mesma forma como eu, é este personagem, o flâneur. Figura que surge com a revolução industrial e a necessidade de mão de obra nas fábricas, que migra do campo com sua base agrária para as cidades, tendo a revolução francesa como sua ideologia. Marco da modernidade. Trata-se então de uma nova experiência de ser e estar.

“No século XIX, antes do desenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes, as pessoas não conseguiam ficar diversos minutos ou até horas tendo de se olharem umas às outras sem se dirigirem a palavra”, explica Simmel no texto de Benjamin. O conceito de “novo”(em um eterno retorno) também aparece neste momento, assim como se experiencia uma nova velocidade personificada pela ferrovia, com o progresso visto como algo positivo.

Há uma dialética nesse novo modus vivendi, de um homem que se sente olhado por tudo e por todos, como um suspeito, daí o surgimento das histórias de detetive à época, e ao mesmo tempo, se sente escondido em meio à multidão, como o conto “O Homem da Multidão”, de Edgar Allan Poe. É preciso se perder na multidão para preservar a privacidade, denotam Benjamin e Matos.

“É quase impossível”, escreve um agente secreto parisiense em 1789, “manter um bom padrão de vida em meio a uma população altamente massificada, onde, por assim dizer, cada um é um desconhecido para todos os demais e, por isso, não precisa envergonhar-se na frente de ninguém”, cita Benjamin ao transcrever um texto de Schmidt.

Perdição

“A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto”, acredita Benjamin. Em outro excerto traduz esta fascinação. “Aprender a orientar-se em uma cidade não exige muito. Mas aprender a perder-se, como alguém que se perdem uma floresta, exige toda uma educação”.

Em sua flânerie (esse perder-se), este novo personagem encontra na paisagem urbana vestígios, como um arquéologo, do que já foi. Toda construção do espaço urbano é como uma ruína, um vestígio, que fornece pistas. Ao mesmo tempo é uma alegoria do passado traz também uma recordação íntima. Em um tempo diverso do atual. Fala-se ainda que era de bom-tom que o flanêur vagasse pelas calçadas tendo como companheira uma tartaruga, o que dá uma dimensão de sua velocidade.

Sob efeito do haxixe, ou a luz lúgubre de lampiões, com euforia e dúvida, o flâneur vive sua ociosidade, que é um manifesto contra a divisão do trabalho, segundo Benjamin, e em seu passeio vê fantasmagorias. Diverte-se, tentando adivinhar a partir de rostos, a profissão e o caráter.

Aura e consumo

Faz parte da flaunerie também o início da experiência de consumo, motivada pela acumulação de capital (com a venda do excedente), fomentada pelas ideologias do liberalismo econômico de Adam Smith (A Riqueza das Nações), John Locke (direito à propriedade) e Thomas Hobbes (com a defesa do livre mercado, da liberdade individual e do progresso), como explica Hobsbawn.

Nascem as galerias com suas vitrines, que expõem os produtos. Aparecem aí também as embalagens; até então vendia-se a mercadoria à granel. Em seu percalço, o flanêur encontra também a aura, um manto sagrado que recobre as mercadorias, como de um instante único, e que os torna objeto de culto. “No vestígio, apossamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós”, revelam Benjamin e Matos. Sendo que a ociosidade do flanêur é um ato contra a divisão do trabalho capitalista.

Fetichismo da mercadoria

A mercadoria dentro deste conceito de Marx, reveste-se dessa aura, fluído invisível; em que resta apenas o valor de troca, o valor de uso se esvanece. Importante explicar que o valor de uso é a utilidade do material e o de troca, revela-se pela relação quantitativa entre valores de uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam (a questão monetária). Relação que muda constantemente no tempo e no espaço.

“Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”, diz Marx no Manifesto Comunista de 1848, conforme citado por Berman.

Os objetos são como símbolos de contemplação e desejo, Oligária Matos pontua que a libido está em tudo nesse período, menos na sexualidade. Sobre a mercadoria, a autora ainda explica que “Sua estética incita tanto à compra quanto ao furto, pois o sinal de seu sucesso não se mede apenas pelo volume de vendas, mas também de roubos”.

Já vi isso acontecer com o livro Lobo da Estepe do Herman Hesse. Fui comprá-lo e apesar de aparecer no sistema, a vendedora da livraria me advertiu que poderia não estar na prateleira, uma vez que este título era muito furtado. E, realmente, o exemplar nem nenhum outro estava lá.

Perda do halo

O fetiche ocorre não somente com os objetos, mas também com as pessoas, que nas ideias de Marx, ganham um valor de mercado. “A burguesia transmudou toda a honra e dignidade pessoais em valor de troca; e em lugar de todas as liberdades pelas quais os homens têm lutado colocou uma liberdade sem princípios – a livre troca”, decreta o autor de O Capital.

Berman também pensa que a burguesia despiu o halo de sagrado de todas as relações, inclusive da família, que se tornou tão somente um viés monetário, ou seja, em sua visão todas as relações são baseadas em interesse.

Há uma mudança do relacionamento das pessoas entre si, mas também consigo mesmas, o que dá lugar à imagem do homem desacomodado. O éthos burguês do capitalismo então vivido traz uma liberdade que leva ao niilismo (Deus não existe, fala Nietzche). O que se busca é sair da fragmentação e desunião modernas. “Nenhuma dimensão da vida escapa mais ao mercado”, coloca Matos, que ainda pontua que se trata da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado.

“O flâneur é um observador do mercado. O seu saber é vizinho à ciência oculta da conjuntura. Ele é, no reino dos consumidores, o emissário do capitalista”, dita Benjamin. Sendo as exposições universais da época o espaço de glorificação dos deuses modernos: a mercadoria, a novidade, a máquina, o progresso, como explica Matos.

“Cada época sonha a seguinte”, defende Michelet. Em uma modernidade de um flanêur que ecoa nos meus passos pela minha cidade.

Referências

BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX. In: BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais, nº 50. São Paulo: Ática, 1985.

_________________. O Flâneur. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III. Ed. Brasiliense, 1995.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções. 9.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MATOS, Olgária C. F. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

SCHMIDT, Adolphe. Tableaux de la revolution française. (Publiés sur les papiers inédits du départment et de la police secrete de Paris). v. 3. Leipzig, 1870. p. 337. In: BENJAMIN, Walter. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Ed. Ática, 1985.

SIMMEL, Georg. Mélanges de philosophie rélativiste. Contribution à la culture philosophique. Trad. De A. Guillain. Paris, 1912, p. 26-7. In: BENJAMIN, Walter. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Ed. Ática, 1985.

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