Metodologia Científica e o Filme ROMA

Pode soar estranho, mas o filme Roma me fez pensar em metodologia científica.
Em m-e-t-o-d-o-l-o-g-i-a.
Sim, isso mesmo. Você leu corretamente.
E por que tal acontecimento inesperado teria acontecido?
As razões foram múltiplas e vou explicá-las aqui.
Antes, para quem ainda não assistiu à premiadíssima película: ela conta um pedaço da história de uma família de classe média, no bairro Colonia Roma, na cidade do México. A história tem fortes referências autobiográficas, reunindo parte das memórias de infância do cineasta mexicano Alfonso Cuarón.
E é já nesse ponto que o filme começa a render reflexões sobre o fazer científico.
Ao ser questionado sobre porque Cuarón quis produzir esse filme, respondeu que foi algo visceral, que simplesmente produziu o filme porque sentia que essa história tinha que nascer, porque a temática lhe perseguia: “A partir de um momento, dei-me conta de que tinha de contar essa história. Mas tanto quanto o filme era necessário para mim, eu duvidava que pudesse interessar aos outros. Cheguei a comentar com meu irmão que possivelmente ninguém iria vê-lo…”, afirmou Cuarón.
Assim que, comumente, o pesquisador também decide se debruçar sobre um tema primariamente porque lhe toca, lhe interessa, lhe é caro. Ponto. Me parece belo e honesto assumir que, por mais que uma pesquisa deva interessar à sociedade e ao campo científico, primeiro de tudo o autor mantenha certo apreço pelo seu objeto de pesquisa. Um je ne sais quoi, algo que nos afeta, para além de qualquer lógica.
Isto posto, Cuarón começa a imaginar como abordaria a sua temática. Chega à conclusão de que muito melhor do que simplesmente descrever sua versão seria explorar outros pontos de vista, de modo que a história é narrada sob a perspectiva da empregada doméstica da família, Cleo.
Ao executar essa manobra, Cuarón oxigena a sua história para que ela possa contar muito mais sobre si e sobre o mundo a sua volta. Isso permite ao autor cotejar outras facetas além da que já lhe era, afinal, conhecida. Criar, tensionar. Assim como o cineasta, um pesquisador procura também despojar-se um tanto do seu caro objeto, atrevendo-se a vê-lo por pontos de vista diferentes – alguns nunca antes imaginados.
O ritmo em Roma lembra diversas teses e dissertações: começa com fragmentos que dão algumas informações curiosas, mas que não dão conta de deixar claro tudo que aquele trabalho vem dizer… Contudo, são suficientemente elegantes para levar-nos ao próximo trecho, e assim por diante, até que, naturalmente, aqueles pedaços, antes aparentemente distantes, formam uma bela imagem – coesa, forte. Desvela-se algo que aquela problemática quer nos dizer, nos revelar, nos fazer pensar, sentir, penetrar…
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Nesse ponto, algumas escolhas do autor, que antes podiam parecer obtusas, passam a fazer todo o sentido. Percebe-se que foram escolhas metodológicas, cuidadosamente engendradas, para atingir um fim mais rico quanto possível. Como a escolha de uma atriz consagrada para o papel da patroa e uma completa iniciante para o papel da inocente empregada. Ou filmar as cenas no exato ritmo que aprecem da história, para que os atores pudessem melhor construir seus personagens, aproximando o fazer artístico de um experimento empírico.
Roma se constrói em primeira pessoa do plural, valorizando escolas e heranças estéticas. Já no título, faz referência a Roma, Cidade Aberta, filme-símbolo do neorrealismo italiano assinado por Roberto Rossellini. Ao mesmo tempo, a película  dialoga com o realismo mágico de autores latino-americanos como Gabriel García Márquez. Filiações lindamente apresentadas e costuradas.
Roma articula temas ambivalentes: é, ao mesmo tempo, pessoal e grandioso, popular e intelectual, tecnológico (rodado em 65mm digital e lançado em uma plataforma de streaming) e clássico (feito em preto e branco com a ousadia dos movimentos cinematográficos da década de 1960). Há calma e caos, solidão e multidão, cultura e barbarie, pragmatismo e lirismo.
Gosto de acreditar que um filme – como uma pesquisa científica – para ser considerado uma obra-prima, precisa vencer uma dura batalha contra o tempo, permanecendo relevante com o passar dos anos. Mais um ponto para Roma.
Como se as contribuições desse filme para pensar em metodologia não bastassem, Roma dá show de contextualização, colocando  o universo íntimo e familiar dos personagens em uma intensa relação com o contexto sócio-político-econômico de um México em meio às revoluções populares da década de 1970.  Texto e contexto, em um balé.
São camadas e camadas sobrepostas para reproduzir a complexidade do imaginário afetivo e das relações sociais. Entre inspirações, referências e técnicas, Cuarón olha para si mesmo e para os seus personagens com sinceridade, colocando luz onde outros menosprezam. Um filme simples e complicado, como o mundo da vida.
Mesmo quando alguns espectadores classificam Roma como monótono encontro paralelos oportunos com metodologia científica. Porque sim, concordo, há em Roma uma melancolia latente. Uma certa solitude. Um fazer que é passo-a-passo, cotidiano, oneroso, ora arrastado, ora surreal…  Enquanto uma parte ansiosa em nós quer mesmo é saber de linhas retas entre A e B, quer dar fast foward no filme, pular as aulas de metodologia e chegar logo ao grand finale – com direito a efeitos especiais, cena do beijo, música, exclamação!
Mas não é assim o artesanato científico: um tanto quanto solitário, um tanto quanto vagaroso, não-óbvio, por vezes perdido em caminhos aparentemente labirínticos?  Uma ideia no coração, uma metodologia na cabeça, uma câmera (ou um lápis) na mão.

 

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