Consumo e desapego com Marie Kondo

Em janeiro de 2019 estreou no serviço de streaming Netflix a série “Ordem na Casa” estrelando Marie Kondo, a guru japonesa especialista em organização pessoal. Kondo é autora do best-seller “A Mágica da Arrumação – A Arte Japonesa de Colocar Ordem na sua Casa e na sua Vida”, de 2014. Fenômeno mundial que, com uma abordagem inovadora, promete acabar de uma vez por todas com a bagunça.

“Eu o convidaria para subir, mas minha vida é uma bagunça” – Cartoon publicado na New Yorker, feito por Liza Donnelly.

“Eu o convidaria para subir, mas minha vida é uma bagunça” – Cartoon publicado na New Yorker, feito por Liza Donnelly.

E como conseguir tal proeza?


O ponto principal de sua técnica, que ela chamou de “KonMari”, é o descarte (o que eu em uma visão budista, penso ser o desapego): consiste simplesmente em segurar os objetos e se perguntar: “Isso me traz alegria?”. Segundo a especialista, só se deve permanecer com algo se a resposta for “sim”. Entre as suas máximas está a de ter apenas 30 livros em casa, o que aterroriza a nós acadêmicos, suponho que ainda mais os de comunicação. Apenas suponho.

Difícil desapego

O viver com menos, com o descarte do que não serve mais, não é novidade. No Brasil, há três programas relacionados de alguma maneira ao tema, todos transmitidos pelo GNT, canal do grupo Globo. São o Santa Ajuda, que organiza casa dos incautos incapazes de encontrar a arrumação perdida; o Desengaveta, que invade o closet de celebridades e promete “desengavetar o que está sobrando” com a venda das peças na internet; e, por fim, o Além da Conta, em que é discutido a “loucura do consumismo dos brasileiros”.

Inclusive, há toda a onda do minimalismo, assunto já abordado aqui no Memorial do Consumo, a partir de uma visão do texto de Fréderic Lordon.

Consumo desenfreado

No entanto, o que vejo de diferente no KonMari é sua perspectiva humana ou que entende o viés emocional dos objetos. Kondo ensina a focar a organização dos lares por cinco categorias: roupas, livros, papéis, documentos e “Komono”, categorização inventada por ela para abarcar o que seria impossível de enquadrar nos itens anteriores, ou seja, os bens de valor sentimental e que portanto, são deixados por último em seu sistema. Dessa forma, há um reconhecimento de que os objetos não têm apenas suas funções pelo qual foram produzidos, mas ganham novos sentidos, que nós lhes conferimos.

“Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido. (…) Esqueçamos que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a noção de que as mercadorias são boas para pensar: tratêmo-las como um meio não verbal para a faculdade não humana de criar”, propõe “O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo”, obra de Mary Douglas e Baron Isherwood.

Dessa forma, defendem que o consumo dos bens é cultural e são marcações, sistemas de informação da nossa sociedade. “(…) o indivíduo usa o consumo para dizer alguma coisa sobre si mesmo”, defende. E mais do que isso, para se comunicar com os outros e entender o que se passa à sua volta.

“(…) há um tempo de viver e um tempo de morrer, um tempo de amar. Os bens de consumo são usados para marcar esses intervalos. Sua variação de qualidade surge a partir da necessidade de estabelecer uma diferenciação entre o ano do calendário e o ciclo de vida”.

Capitalismo e magia

Everardo Rocha é professor da PUC Rio e investigador do consumo. Rocha atribui aos objetos dentro da perspectiva capitalista um significado que vai além de sua mera esfera de produção, mas imbuídos de outros significados e funções; ligação mágica e ritualística similar ao totem na sociedade tribal.

Dentro dessa visão, compreende-se que esse viver com menos vai contra o sistema capitalista de nossa sociedade, que incita por meio da propaganda ao consumo. O professor explica que os meios de comunicação de massa tem entre um dos seu papéis predominantes, ser um grande instrumento pedagógico, explicando a produção e transformando produtos e serviços em necessidades, desejos, utilidades.

Como saberíamos que não poderíamos mais viver sem um iPad (tornando-se um item de primeira necessidade) se a Apple não nos explicasse?

“Os meios de comunicação de massa, e aqui é preciso destacar o marketing e a publicidade, nos dão o código, composto tanto de signos de cada cultura local quanto de signos da cultura global que, ao transformar objetos em significados, também transforma cada serviço ou produto em utilidade, cada mercadoria em necessidade, cada marca em desejo embebido de emoção. É pela ação da mídia que enquadramos a esfera da produção em um código que lhe dá a experiência humanizadora, atribuindo ou retendo o sentido”, elucida o pesquisador.

“(…) o consumo se humaniza, se torna cultural, ao passar, definitivamente, através dos sistemas de classificação. A relação de compra e venda é, antes e acima de tudo, relação de cultura. A troca simbólica, antecipando as demais modalidades sociais da troca e a classificação, permitindo a reciprocidade entre produção e consumo”, se profunda em outro trecho.

Mais do que ensinar as pessoas a retomar o controle de suas casas (que antes de iniciar o processo, ela primeiramente se ajoelha, toca o chão é agradece ao lar), educa como retomar o controle de suas próprias vidas. Eu entendo bem disso, vira e mexe peço socorro à faxineira com o discurso de que “a casa e sua desorganização me venceram”(o que tem acontecido com uma certa regularidade agora no mestrado, admito).

Quem não possui mais do que efetivamente precisa?

A arrumadeira ensina a dizer adeus e manter apenas o que nos traz alegria e com reverência, agradecer àquilo que não nos serve mais e descartar com o respeito que se deve ter não com meros objetos, mas nossos totens humanizados.

Baseado nos textos:

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004.

ROCHA, Everardo. Totem e consumo: um estudo antropológico de anúncios publicitários. Alceu, v. 1, n. 1, pp. 18 a 37, jul/dez 2000.

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