O direito à camiseta

A problemática do feminismo ganhou força nos últimos anos. Os coletivos feministas se multiplicam e o termo aparece com mais frequência nos meios de comunicação. E nesta nova fase, um dos alvos da disputa é a publicidade. Nos últimos anos foram inúmeros os casos de marcas que tiveram que se retratar publicamente após virulentos protestos nas redes sociais. E algumas delas foram além, não apenas desculpando-se ou defendendo-se das acusações de machismo, mas enfrentando a questão ao assumir o passado e propor um novo começo, como foi o caso recente da Skol. Em março de 2017, a cerveja Skol veiculou uma campanha comemorativa do Dia das Mulheres onde reconhecia sua comunicação anterior como inapropriada e propunha o redesenho de seus cartazes antigos pelas mãos de talentosas ilustradoras. O slogan era “Redondo é sair do seu passado”.  A campanha gerou discussão no meio publicitário e pode ser considerada um marco por três motivos: pelo extenso passado de campanhas machistas da marca, por estar inserida em um segmento onde a comunicação é por via de regra machista e por se tratar de um anunciante de enorme peso, tendo a Skol sido considerada a terceira marca mais valiosa do país em 2016, segundo o ranking Interbrand.
 
Ainda que não seja possível afirmar a existência de um novo padrão, pelo menos se torna patente que há uma discussão desestabilizante dos padrões vigentes. No texto “O espírito do capitalismo e o papel da crítica”, Luc Boltanski e Ève Chiapello investigam a relação dialética entre o sistema capitalista como um todo e as críticas do qual ele é alvo. Os autores partem do princípio de que não basta a dominação econômica-estrutural se esta não for acompanhada de alguma legitimidade social. Por isso, se as críticas ao sistema não logram desmantelá-lo por completo, também é inegável que alguns avanços foram feitos para atender essas críticas. Ao longo do texto mencionado, vai se revelando como a estrutura dos meios de produção afrouxa certos pontos de pressão da sua sistemática concentração de renda e poder para aplacar algumas críticas e conservar sua influência. Portanto, os autores alertam para o caráter instável desses ganhos, que nunca podem ser considerados conquistas consolidadas, e analisam de que forma as críticas conseguem ganhos, instáveis, vacilantes e as vezes ilusórios, mas algumas vezes inegáveis. 
 

O que é exatamente uma crítica?

Segundo Boltanski e Chiapello (2009, p 68), a crítica é um encontro de um sentimento com uma teoria, com uma racionalização. O sentimento é de indignação e só pode surgir a partir do momento em que se concebe que é possível viver/fazer de um modo diferente: “a idéia de crítica só ganha sentido num diferencial entre o estado de coisas desejável e um estado de coisas real” (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009, p 62).  As críticas podem ser divididas entre reformistas e revolucionárias. As críticas revolucionárias são aquelas que atacam a estrutura do sistema, onde só será possível atendê-las se reconfigurar-se a estrutura de produção. Já as críticas reformistas são aquelas que se debruçam sobre o que os autores chamam de uma prova, são as críticas que se concentram em um ponto específico e aparente da produção capitalista, como por exemplo, no caso da luta por alguns benefícios para os trabalhadores. As críticas ao machismo e outras questões de gênero se concentram na forma como a mulher é representada na publicidade, portanto elas partem de uma aceitação da existência da publicidade e do uso simbólico de imagens para escoar produtos. São portanto críticas sempre reformistas.
 
Tomando o segmento cerveja como ícone para a discussão no mercado, as campanhas da cerveja Itaipava oferecem um exemplo ilustrativo da absorção das críticas. Os anúncios com a personagem Verão, presente na comunicação da marca desde 2014, foram denunciados diversas vezes no CONAR, constando apenas um condenação, em 2015. No ano de 2016 foram três denúncias com acusações relativas a forma como se exibe essa personagem e todas foram arquivadas. Mas, ainda que obtenha vitórias sistemáticas no conselho, a Itaipava vem fazendo mudanças graduais na personagem Verão:
 

Mudanças no figurino e posição da personagem Verão. Fonte: UOL
Mudanças no figurino e posição da personagem Verão. Fonte: UOL

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Em 2014 a personagem Verão é uma garçonete que serve a cerveja a homens numa praia, em trajes mínimos, enquanto esses clientes comentam o seu corpo. Em 2017, após lentas mudanças que foram se acumulando, a personagem passou a falar frases completas, ganhou uma camiseta, se tornou consumidora da cerveja e passou a ser retratada em situações de lazer com seus amigos.
De acordo com Boltanski e Chiapello, o preço que a crítica paga por ser ouvida é ter seu valor sendo usado pelo processo de acumulação do capital.  No caso das críticas feministas, as mudanças na propaganda podem aplacar um movimento em direção a mais paridade dentro das empresas e nos próprios processos de produção dessas imagens. No entanto não se pode ignorar as mudanças ocorridas. Se as imagens são importantes o suficiente para serem profanadas, discutidas e questionadas, as suas mudanças podem ser celebradas.
 
 
Referências
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BEZERRA, Mhirtyani. Conar puniu sete peças publicitárias por denúncias de machismo em 2016. UOL. São Paulo. 17 de abril de 2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/04/11/conar-puniu-sete-publicidades-por-denuncias-de-machismo-em-2016.htm . Último acesso em 05 de outubro de 2017.

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