O hedonismo do ser e o desejo da magreza: como o ideal normativo estético movimenta o mercado

Em 1975, quando escreveu o segundo volume de Cultura de Massas no Século XX: necrose, Edgar Morin já antecipava que a sociedade do hedonismo do ter, que antes buscava o prazer imediato vinculado ao consumo de bens materiais, comprando casas, carros, roupas e utilitários, passou a ser também a sociedade do hedonismo do ser, onde os bens simbólicos ganharam maior projeção e o desejo passou a se vincular fortemente ao imaterial, mais do que a posse o indivíduo buscava a sensação, a fruição.

A posse de bens materiais também carrega sua carga imaterial, do que o produto representa para aquele indivíduo e para a sociedade e de como isso impacta na identidade (individual e coletiva) como a exemplo da estereotipada representação de sucesso do homem detentor de um carro de luxo; mas o hedonismo do ser extrapola essa lógica de propriedade. Nas palavras de Morin (1999, p.136) “O hedonismo favorecido e excitado pelo desenvolvimento do consumo prolonga-se, também, na nova cultura, mas metamorfoseando-se.” é o hedonismo da revolução cultural, onde mais do que ter e parecer importa acreditar ser e pertencer.

Edgar Morin de 1975 soa cada dia mais atual, ainda que na época não pudesse prever o estrondoso impacto das tecnologias, da internet e das redes sociais nas dinâmicas e fenômenos da sociedade. É a partir deste contexto interpretativo sobre as lógicas de consumo que um objeto de desejo ganha destaque: o corpo magro. É o ideal normativo estético do corpo objetificado como “(…) um ideal de beleza delgado – esbelto – quadris, ancas, pernas.” (MORIN, 2009, p. 141) que impacta a todas e todos mas tem especial e cruel adesão ao público feminino, historicamente atacado por padrões estéticos em uma sociedade do consumo que é, sincronicamente, do patriarcado.

A magreza circula como um bem simbólico que significa mais do que o corpo, é a simbologia do sucesso, da beleza, do estilo de vida, do equilíbrio e da conquista. Ter a passabilidade magra é não vivenciar o doloroso cotidiano gordofóbico instaurado e perpetuado nas sociedades ocidentais formatadas para pessoas magras, dos lares ao transporte público, vestuário, estruturas e instituições prontas para atender aos corpos magros e atacar o corpo gordo. O desejo da magreza é o hedonismo do ser que surge na vontade de consumir o prazer da vida sem julgamentos diários, o desejo de pertencer à norma e acessar as facilidades de quem se enquadra no ideal projetado pelo mercado.

            O maior trunfo mercadológico da magreza é que ela vende para o corpo gordo e para o corpo magro. Há quem esteja em processo de emagrecimento, há quem deseje a manutenção do corpo magro e há quem viva a magreza de forma fictícia  por meio de duplos ou sósias. Para todas essas pessoas há produtos e bens simbólicos prontos para o consumo: pílulas mágicas de emagrecimento, alimentos fitness, roupas e ambientes adequados aos miúdos corpos. E para aqueles que não alcançarem o ideal de magreza ainda resta viver no outro, a projeção do universo imaginário dos duplos/sósias se fortalece com o compartilhamento de corpos padronizados nas redes sociais. Até mesmo a contracultura, a exaltação de um ideal de corpo gordo em contradição à estética normatizada já é prevista pela lógica do consumo, tornando-se também nicho de mercado e potencial de lucratividade dissidente.

            Esse trunfo da amplitude do público alcançado pela cristalização do corpo magro como ideal estético é conquista exclusiva ao viés do mercado e ao enriquecimento de quem dele se utiliza. Do ponto de vista social, do acesso à cidadania, de uma sociedade mais justa e igualitária, com liberdade e promoção à saúde, as lógicas de mercado atribuídas ao ideal normativo de corpo magro são essencialmente de desconstrução. A estigmatização do corpo gordo potencializa desigualdades e distancia a população da busca por um estado de bem-estar social. Cabe refletir a quem interessa o prolongamento desse processo e, a partir disso, construir  resistência. Para traçar a possibilidade de uma transformação do status quo Edgar Morin lembra que “Há, pois, esperança, pois a esperança é sempre o improvável.” (MORIN, 1999, p. 205). Sejamos o improvável.

REFERÊNCIAS

MORIN, Edgar. Cultura de Massa no Século XX – O Espírito do Tempo: Neurose. 9ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

MORIN, Edgar. Cultura de Massa no Século XX – O Espírito do Tempo: Necrose. 3ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

Mayara da Quinta é pesquisadora na área de Comunicação, Saúde e Consumo, doutoranda em Comunicação na Universidade Federal de Goiás (UFG), e membro do grupo de pesquisa em Comunicação, Consumo e Identidades Sócio-Culturais (CICO), da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

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