O trinômio 'consumo, valor de troca e valor de uso' no cotidiano chinês

Por Marcia Tondato


Introdução

O corpo teórico do campo da Comunicação foi construído tendo em vista a perspectiva ocidental do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, resultando em avanços e rupturas que ocorreram a partir de princípios-base simplificados em dicotomias radicais, modelos generalistas, especificidades funcionais. O estudo dos objetos referentes ao campo da Comunicação foi, e é, de certa forma, uma atividade “privilegiada”, visto se tratar de “objetos em construção”, com a possibilidade de acompanhamento, como ressaltado por Panofsky (2000: 345) ao dizer que “a arte do filme é a única cujo desenvolvimento foi testemunhado desde o começo por homens ainda vivos”.
Esta contemporaneidade suscitou minha curiosidade científica, impelindo-me a refletir sobre o consumo na China e “a partir da China”, em um contexto complexo e até contraditório. O objetivo é discutir o processo de formação de hábitos de consumo de bens materiais, do
pon- to de vista de espectador-visitante de um país longínquo, sobre o qual pouco sabemos. Uma estada rápida, mas dinâmica o suficiente para permitir observações de um hábito que agora é construído pelos chineses, enquanto no Ocidente vivemos a interface de um capitalismo que se descobre impotente diante do que ele mesmo provocou (poluição, vio- lência) e de um consumo que se reconhece limitado como modo de promoção de desenvolvimento sustentável.
Ao falar da reprodutibilidade técnica da obra de arte na época e de seus efeitos, Benjamin (2000: 222) lembra “que as superestruturas evoluem muito mais lentamente que as infraestruturas”, referindo-se à possibilidade de avaliação da dinâmica das transformações culturais em vista das condições de produção, e, com base nisso, apresento o contexto chinês atual de inserção no campo do consumo, fazendo uma releitura do processo pelo qual já passamos.
O que é a China hoje? Nas palavras do presidente chinês reeleito, Hu Jintao, no 17o Congresso do PC chinês (Costa 2007), a China é um país que rompe com uma tradição que colocava interesses de camponeses e operários em primeiro lugar e parte para um crescimento fundamentado na ciência e na tecnologia, com aumento de produtividade e qualificação da mão de obra. Na prática, é um país ainda com milhões de pessoas carentes de saúde, educação e habitações decentes no campo e nas periferias, mas com arranha-céus de mais de 400 metros nos centros financeiros (ibidem).
Um resumo rápido do que vemos hoje na China é exposto a seguir, salientando que são impressões de uma passagem rápida, semelhante ao que perceberia um chinês que visitasse o Brasil de Manaus a Porto Alegre em 15 dias. Shenzen, uma cidade estranha, onde desenvolvimento é traduzido em prédios envidraçados de mais de 50 andares, que, mes- mo sendo apenas um pequeno recorte, deixa uma sensação de exploração, de desrespeito. Xangai, um pastiche, denota o Ocidente invadindo a Ásia, cuja interpretação deve levar em conta o nosso imaginário construído a partir do que Hollywood sempre nos transmitiu sobre a cidade. Poluída ao extremo. O céu cinza, o ar opaco e abafado.
Hong Kong, em uma descrição sem muita criatividade, é realmente a esquina do mundo. Os hotéis localizados em um espaço tipicamente desterritorializado, no sentido descrito por Ortiz (1994: 105), fazem-nos “sentir em casa”. Um centro comercial sem nenhum signo identitário, um local anônimo, “capaz de acolher qualquer transeunte. Espaço que se realiza enquanto sistema de relações funcionais, circuito no qual o indivíduo se move”. Em alguns aspectos, um grande shopping, mundializado e, portanto, reconhecível. Não precisamos de guias para nos acom- panhar. Do outro lado da baía, a Hong Kong “de verdade”, que pode ser apreciada dos decks dos hotéis. Em primeiro plano, os altos edifícios e, ao fundo, as colinas escondendo as vilas de pescadores, as residências típi- cas, locais que necessitam do acompanhamento de guias para visitação. Macau, outra cidade, outra realidade. Para nós, a arquitetura colonial, as ruas estreitas, de paralelepípedos, com nomes portugueses, despertam um sentimento de nostalgia, talvez por isso seja a última parada do roteiro turístico. Porém, quando ao fundo vemos as torres espetaculares dos cassinos que chegam, surge um receio de que a ganância acabe com uma parte importante da história, sob os aplausos da população que vê nisso a entrada na modernidade e no cenário mundial.
Neste artigo, atendo ao convite de Morin quando questiona as críticas à cultura de massa, enfatizando que os parâmetros “valor artístico”, “valor humanista”, “alienação” não são suficientes para pôr em xeque um modo de viver e ver a vida, nascidos que somos na cultura de massa, ou indústria cultural, como preferem Adorno e Horkheimer. O principal argumento é que a crítica à indústria cultural não pode ser reduzida à crítica ao capitalismo, mas deve ser estendida ao globo, pois a existência da indústria cultural tem origem na área técnico-industrial-consumidora, cujos efeitos não atingem apenas as populações dos países capitalistas, mas “toda a sociedade de consumo, seja qual for a ideologia oficial” (Morin 1990: 166).
Morin (idem: 171) caracteriza a cultura de massa com base em uma “dialética circular” entre o desenvolvimento econômico e o social que daria

vida por procuração imaginária às necessidades da vida, mas atiçando em troca essas necessidades no sentido da aspiração ao bem-estar e à felici- dade. […] perturbada ou perturbadora, essa dialética introduz e divulga fora do seu quadro funcional, isto é, no conjunto do planeta, os grandes modelos da nova vida.

A partir das experiências da viagem de 15 dias a algumas das principais cidades da China, utilizo a figura da “dialética circular”, com base nas trocas, simbólicas e materiais, para refletir sobre a aproximação de hábitos de consumo com características ocidentais ao cotidiano chinês, um povo que, mesmo se mantendo culturalmente diferenciado, vive ins- tâncias da globalização desde as viagens de Marco Polo.
 


 

O artigo completo pode ser encontrado em pdf, aqui: PDF.
Este artigo foi publicado originalmente na revista Comunicação, Mídia e Consumo v. 6, n. 15 (2009) do PPGcom ESPM.

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