Mediações de sentido no campo da arte. A interlocução artista-público-obra de arte no espaço social. Contemplação, apropriação ou consumo? – texto por Marcia Tondato

A reflexão aqui trazida em síntese tem como base pensar as artes plásticas no ambiente contemporâneo, fragmentado, local de “sensações superficiais”, “experiências liminares”, aberto ao “imaginário espetacular”, como causa da “reestruturação espacial e desenvolvimento de centros artísticos e culturais urbanos” (FEATHERSTONE, 1995, p. 89, 90), num processo de restauração e revalorização de áreas urbanas deterioradas, que se convertem em espaços “nobres” de moradia, museus, centros culturais (agora mais interativos do que expositivos). Causa e efeito, o resultado indireto é uma expansão do número de artistas, que, de certa forma, atende e demanda um público maior, constituído por consumidores de bens culturais, que investem em capital cultural na acepção de Bourdieu (2008), como distinção social. Um público, ou plateia que necessita de intermediários culturais, a nova petite bourgeoisie, que “oferece bens e serviços simbólicos”, “transmitindo o estilo de vida dos intelectuais a um público mais amplo […] o que integra um processo em longo prazo de aumento do poder potencial dos produtores de símbolos e da importância da esfera cultural”. (FEATHERSTONE, 1995, p.90).

Aparte disputas pelo poder na hierarquia dos grupos dominantes no campo do simbólico – produtores, difusores – (FEATHERSTONE, 1995, p.94), uma reflexão sobre a interlocução artista-público-obra de arte no espaço social deveconsiderar a entrada de novos agentes no processo, no formato das culturas populares. Seja qual for a denominação, é inegável que passamos por uma transformação nos modos de produzir a cultura, não só técnicos, mas principalmente estéticos ou, nas palavras de Morin (1990:78), “a cultura de massa é, sem dúvida, a primeira cultura da história mundial a ser também plenamente estética”, implicando nisso uma relação muito mais ampla e fundamental do que “ter qualidade” ou “ser belo”.  Objetos do cotidiano devem ‘ir além’ do utilitarismo, devem permitir uma leitura exterior ao uso funcional, adquirindo um significado a ser agregado aos seus usuários. 

O mesmo ocorrendo com a contemplação/apropriação cultural e artística. Num cenário de identidades definidas historicamente, mais que biologicamente, os significados se tornam cada vez mais dependentes do simbólico, afastados das tradições e dependentes de “traduções”, usando a noção de Hall (2006, p.87), para o que concorrem os disseminadores. Da mesma forma que os produtos da cultura de massa exigiram a constituição de um grande público, de plateias, prerrogativa de um sistema mercadológico, no caso da arte e cultura “eruditas”, se faz necessário a constituição de um grupo receptor mais amplo, seja por questões de inclusão social, transmissão de valores culturais, seja pela necessidade, menos “nobre”, de estabelecimento/manutenção de um mercado, de constituição de um espaço de circulação de novas possibilidades. O objetivo dos disseminadores seria ‘dar a conhecer’ a existência das diversas possibilidades das artes e da cultura, seu valor social e cultural, e como usá-los de maneira adequada (FEATHERSTONE, 1995, p. 38), intermediando entre “o polo de onirismo desenfreado e o polo de padronização estereotipada”, este grupo possibilita o desenvolvimento de uma corrente cultural média, nos termos de Morin (1990, p.50). 

Mas arte também vive da crítica e, seja qual for a expressão plástica da obra, a crítica se expressa em palavras, o que desloca os sentidos uma vez que é através do uso que estas adquirem um significado. Na contemporaneidade a crítica saiu dos limites da arte para o universo da indústria cultural. Os museus, as exposições patrocinadas passam a fazer parte do repertório da crítica. “O contemporâneo é ‘um dândi, de uma boêmia nova e mais democrática’, uma nova figura metropolitana que ‘explora caminhos já percorridos pela arte de vanguarda, atravessando a fronteira entre o museu e a cultura de massa, mas que transfere o local do jogo, da galeria para as ruas da moda” (DEL SAPIO apud FEATHERSTONE, 1995, p. 141). Neste processo, museus contemporâneos abandonam seu compromisso com o cânone cultural e o projeto educacional para atender à demanda de um público que necessita ‘interagir’ com as obras, numa abordagem mais lúdica das exposições, que deve falar a linguagem dos meios de comunicação de massa para ser ‘compreendida’, ‘consumida’ pelas multidões. Uma nova forma de fruição, agora retornando ao conceito original de Benjamin.

Mas quem é o crítico da arte nesse ambiente de consumo e mercado? O intelectual vanguardista, o jornalista especializado, a socialite intelectualizada? Quais as bases do contrato cultural para o consumo da obra de arte na contemporaneidade, se é que concordamos que já não existe fruição?

Arte erudita ou popular, de vanguarda ou clássica. Toda a produção é marcada por processos de interpretaçao-recepção de discursos. É na palavra que se concretiza a relação social, seja de caráter ideológico, estético, científico, moral ou religioso. “A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN, 1988, p. 38). Ao conceber sua obra, o artista tem em mente um horizonte de fruição, em termos mercadológicos, um público-alvo, uma demanda a ser satisfeita, seja a galeria de vanguarda, os anais da história da arte, ou o mercado ‘leigo’. Mas é na palavra do crítico que isto se materializa, consolidando o desejo inicial, ou desvirtuando-o. Os reais motivos pelos quais Leonardo Da Vinci produziu a Mona Lisa ainda não foram completamente desvendados, mas também nem precisam ser. O que importa para o legado da cultura são os elementos estético-técnicos presentes na obra, que a transformaram em arte. Arte para ser fruída, exibida, admirada e consumida … nos souvenires. 

A contemplação/apropriação da arte no contexto pós-moderno se dá de modo mais amplo por meio de uma aproximação com o cotidiano, rompendo com o museu e a academia. Ao mesmo tempo em são necessários intérpretes, de forma a consolidar e legitimar-se um capital cultural, há o estabelecimento de uma nova forma de ver arte, que ocorre sem necessidade de intérprete visto que a arte não é mais confinada a um espaço, nem a um sentido único. Os trabalhos de Marcel Duchamp e Andy Warhol são neste sentido emblemáticos de movimentos artísticos que “procuraram apagar as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana” (FEATHERSTONE, 1995, p. 98, 99), movimentos que buscavam “eliminar a aura, dissimular seu halo sagrado”, tirando a arte do espaço do museu e da academia, levando-a para as galerias, caracterizadas pelas dinâmicas estratégicas comentadas acima. 

Em uma segunda instância, ocorre a estetização da vida, transformando o cotidiano em “obra de arte”, definido por Wilde como a diversificação das formas de realização e abertura a novas sensações, traduzido por Baudelaire como o “dândi, que faz de seu corpo, seu comportamento, seus sentimentos e paixões, sua própria existência, uma obra de arte”, isto levando à construção de estilos de vida distintivos, reforçados pelo desenvolvimento do consumo de massa em geral (FEATHERSTONE, 1995, p. 99, 100). Terceira instância, o aspecto central da sociedade do consumo: o fluxo de signos, caracterizado pela “manipulação comercial das imagens […] numa constate reativação de desejos por meio de imagens”, conforme teorizado por Marx, pela Escola de Frankfurt, por Baudrillard, Jameson. 

É no contexto da relação entre a estetização da vida cotidiana e deste fluxo de signos caracterizado pelo confronto das “pessoas com imagens-sonhos que falam de desejos e estetizam a fantasiam a realidade” (HAUG apudFEATHERSTONE, 1995:100) que se desenvolve a esfera dos intelectuais e artistas que adotam estratégias de distanciamento. Fazem isso em nome da preservação de uma arte “pura”, culturalmente inacessível ao “público médio”, ou mais precisamente, às camadas populares, resultando na estereotipia de que ‘cultura custa caro’, reforçando as diferenças socioculturais. 

Cenário que só é modificado com a intervenção das empresas (Responsabilidade Social), ou programas sociais governamentais (capitalização política), na forma de patrocínios e parcerias, permitindo acesso à exposições, espetáculos a preços populares, promovendo uma atividade de massa. Grupos guiados que se aglomeram em frente a obras clássicas, ouvindo explicações que pouco ajudam para o desenvolvimento intelectual ou estabelecimento de uma prática cultural, muitas vezes não indo além da aquisição de um souvenir na lojinha do museu, de uma caneca, ou camiseta, pois afinal a satisfação vem do consumo, da aquisição de um bem. No retorno ao lar, aquele raro “momento cultural” é transformado em uma peça a ser exibida aos amigos, troféu de uma tarde de atividade cultural, ou simplesmente esquecido em uma gaveta. Para a pequena burguesia, foi mais um momento de exibição de roupas, uma atração entre o almoço e o bate papo com os amigos.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. 5ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção – crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª. Edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MORIN. Edgar. Cultura de massas no século XX – neurose. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

Marcia Perencin Tondato – Estágio de pós-doutorameneto na UnB (2015), doutora em Comunicação pela ECA-USP (2004), mestre em comunicação pela UMESP (1998). Graduada em Publicidade (1992) pela UMESP. Docente, pesquisadora e orientadora do PPGCom ESPM desde 2009. Pesquisadora-líder do grupo de pesquisa Comunicação e Consumo e Identidade Socioculturais – CiCO. Coordenadora do GT COMUNICAÇÃO, CONSUMO e IDENTIDADE: materialidades, atribuição de sentido e representações midiáticas do ComuniCon-PPGCom-ESPM. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9242834336115520

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