She-Ra: diversidade e humanidade na nova versão da Netflix

Em plena quarentena na Alemanha descobrimos, eu e minha filha de oito anos, o remake do desenho animado She-Ra – A Princesa do Poder. She-Ra foi uma série originalmente americana de grande sucesso nos anos 80, e seus 93 capítulos foram exaustivamente exibidos pela Rede Globo nos programas da Xuxa e TV Colosso. Na versão primeva, a sensual princesa Adora levanta sua espada mágica e se torna She-Ra, a mulher mais poderosa do universo que, com a ajuda de seus amigos, procura derrotar a Horda do Mal para que seu planeta Etheria possa finalmente ser livre.

A nova She-ra (2018) e sua versão antiga (1986)

A nova versão da Netflix, em parceria com a Dream Works, foi criada e produzida pela jovem e premiada cartunista Noelle Stevenson, e traz aspectos contemporâneos, traços bem definidos e características bem comuns aos animes. A começar pelo título, que logo é colocado no plural – She-Ra – as Princesas do Poder –, a nova versão já indica intenções mais alinhadas aos novos conceitos.

A nova princesa é agora, de fato, “nova”: uma jovem que trocou o vestido sexy e curto por um shorts mais ergonômico, e que desconhece seus poderes demonstrando constantemente suas dúvidas diante dos impasses da trama, nos apresentando uma rica jornada de amadurecimento da personagem frente às importantes lições de vida. Mas, de longe esta seria a grande surpresa do seriado. Ao assistir com minha filha alguns episódios, coisa corriqueira para uma mãe preocupada com os conteúdos que circulam pela casa e cabeça de sua prole, fiquei bastante surpresa e intrigada ao observar o grau de androginia dos personagens, bem como o fato de que a trama traz de forma explícita algumas representações do universo LGBT. Já na primeira temporada, a série dedica um capítulo inteiro para mostrar o relacionamento romântico entre duas personagens femininas, as princesas Spinnerella e Netossa, e na segunda temporada aparecem os pais do Arqueiro, Lance e George, ambos negros. Também fica evidente a tensão romântica entre She-Ra e sua pseudo-tutelada Felina, uma rebelde personagem híbrida, meio humana e meio gata, que demanda a atenção e afetos de She-Ra. Há também Double Trouble, oficialmente apresentado pela Netflix como um personagem não binário que se metamorfoseia para realizar suas espionagens e trapassas, e é dublado pelo ativista e escritor também não binário Jacob Tobia. No seriado também nos chamam a atenção os vários tons de pele dos personagens, bem como o fato de que a maioria dos corpos físicos não se encontram dentro do padrão esbelto e curvilíneo que minha geração se acostumou a ver.

A diversidade naturalizada para o público infanto juvenil.

Não é de se estranhar que uma dura crítica pululou por alguns cantos por onde a trama foi exibida. Os mais conservadores acusaram a nova versão de “masculinizar” a personagem, levantando a questão da evidente cultura de produção de personagens infantis com características corpóreas que agradam mais a adultos do que crianças, fato recorrente na década de 1990, a lembrar das próprias apresentadoras infantis da época – Xuxa, Angélica e Eliana. Não é de se estranhar, também, que a maior crítica parte de um público masculino com idade acima de 30 anos, conforme apontam as estatísticas do IMDb[1] (Internet Movie Database), uma conhecida plataforma online que reúne dados sobre música, cinema, programas e comerciais de TV e jogos de computador, e que hoje pertence ao Grupo Amazon.

A nova She-Ra, de fato, não nos lembra muito a antiga protagonista sexy, de corpo curvilíneo,  e seios proeminentes, e talvez esta seja a razão dela ser mais condizente com seu público alvo. O tom solene da antiga trama também deu lugar a narrativas descontraídas, cheias de humor e leveza, e os personagens são ricos em personalidade: cada qual traz sua contribuição para o bom entendimento desta pluralidade existente na raça humana, o que também resulta em uma maior proximidade com o público infanto-juvenil. A equipe de roteiristas de Noelle Stevenson, composta apenas por jovens mulheres, consegue trazer à tona valores como humanidade e profundidade nas tramas e personagens, o que encanta qualquer plateia disposta a se deixar levar. Para a geração que conviveu com a She-Ra dos anos 1980, porém, sempre haverá um espaço para lembranças e comparações, mas é inegável o quanto esta nova versão está à frente da anterior.

A série não decepciona em suas cinco temporadas, e a trama é deliciosa. Não consegui me desvencilhar da enorme quantidade de símbolos e mensagens que traz ao seu público mirim de forma lúdica, mas explícita e verdadeira. Minha filha não teve qualquer problema para entender e naturalizar toda esta diversidade, mas fico imaginando como tem sido em outros lares mais conservadores, e se existe esta “pseudo censura” por parte de pais que buscam nestes programas infantis valores que estejam alinhados de alguma forma às suas crenças. Como diria Noelle, “se não gosta, não assista”, mas no caso dos pequenos trata-se de “não deixar assistir”, o que é algo mais difícil e complexo. Eu mesma tenho meus critérios, e de todos os desenhos assistidos por minha filha, o único que (man)tenho restrições é o seriado da Barbie, e mesmo assim procuro conversar e fazê-la entender a razão da minha “cautela”.

Tirando o lado lúdico e mágico, não há nada de ambíguo no novo seriado de She-Ra. Ele é esclarecedor e verdadeiro, leve e divertido: uma ode ao otimismo e à esperança em tempos de pandemia e obscurantismo.

LARA VOLLMERLara Vollmer é designer, professora de Design e doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM-SP. Vive atualmente na Alemanha e foca seus estudos na diminuição do consumo e desaceleraç


[1] https://www.imdb.com/title/tt7745956/ratings?ref_=tt_ov_rt

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